MalDitos
Ai, maldita seja eu
Por perder tanto tempo comigo própria
Numa obsessão tão compulsiva
Que para consumo se torna imprópria
Consumo tudo à minha volta
De tantas voltas que dou
O entusiasmo inicial desvanece-se
E depressa desaparece
Sem me dar tempo para assimilar
Tudo aquilo que me apetece
Apetece-me fazer tudo ao mesmo tempo
Sem fazer nada por isso
Ai, maldito sejas tu
Por seres uma constante nestes meus desvairos
Quando todos desistem
Vejo o que deixei para trás: uma cambada de otários!
Projecto numa imensa escuridão
Planos que nunca verão a luz do dia
Tu persistes e insistes em ficar
Permaneces ao meu lado
E eu sem nada para te dar
A não ser as minhas angústias, frustrações, medos, ilusões
É bom amar
Mesmo sabendo que já não há mais nada a declarar… apenas tudo!
domingo, 9 de outubro de 2011
domingo, 29 de maio de 2011
SONO
quarta-feira, 25 de maio de 2011
Uma realidade tornada sonho
Hoje acordei eufórica com o barulho das minhas próprias gargalhadas. Quando a euforia passou e a tomada de consciência de que estava acordada se apoderou do meu consciente assustei-me. Lembrei-me de tudo o que tinha sonhado e as imagens do sonho não paravam de correr pela minha mente fora. Era a continuação do sonho da noite anterior. Fiquei na dúvida se estaria a lembrar-me dos sonhos ou se já os estava a imaginar. Fosse como fosse davam uma boa história. Olhei para o relógio. Eram 03h27 da manhã. Faltava tanto tempo para despertar. Apercebi-me de que continuava com sono. Voltei-me para o outro lado e adormeci, não sem antes pensar no que me tinha feito rir tanto. Com sorte podia ser que lá voltasse.
Ah! E não é que consegui mesmo voltar? Pensei logo que o melhor a fazer seria conter as gargalhadas sonoras para não acordar de novo.
E foi assim:
Estava ao balcão de um dos snack-bares de uma feira popular. Era uma feira fantástica com inúmeros números de circo junto à porta de cada carrossel, junto a cada diversão. Eu estava a delirar de alegria. Nunca tinha assistido a nada assim, nem nos filmes. Era a loucura e parecia tão real que me senti feliz! Do sítio onde estava via a vitrine do snack-bar. Tão alta que deixava ter uma vista desafogada para a praça central da feira, com a sua roda gigante da praxe. E eis que surge novamente o mimo. “Este mimo é um mimo”, foi o que eu pensei assim que entrei na feira e o vi pela 1ª vez. Tinha um sorriso encantador e algo estranhamente familiar. Conquistou-me quando me deu uma pequena flor vermelha assim que passei junto dele. Desde essa altura que tinha passado a manhã inteira a seguir-me. Mesmo quando deixava de o ver, aparecia passado uns momentos nos mais diversos sítios, sempre com o seu sorriso encantador a acompanhar; pendurado num carrossel, empoleirado no cimo de uma árvore, a fingir que bebia água no chafariz. Mas foi a sua aparição no snack-bar que me arrebatou.
Como ele não entrou atrás de mim, ia espreitando lá para fora para ver se o via, mas nada. Até que vi o seu sorriso encantador no canto superior esquerdo da enorme vitrine. Não fazia ideia de como ele tinha conseguido ir lá parar e ele nem me deu tempo para ir lá fora espreitar. A sua cara desapareceu por momentos, aparecendo depois de corpo inteiro junto à vitrine. Começou a andar em frente mas de cara virada para mim, junto à mesma, a acenar com a mão esquerda e a desaparecer, como se estivesse a descer umas escadas. Escadas essas que não existiam. Ficou desaparecido tempo de mais para o meu gosto mas quando apareceu, da mesma maneira como tinha desaparecido, desta vez a subir umas escadas imaginárias, trazia um enorme ramo de flores de plástico que lhe tapavam a cara. Pendurado ao pescoço tinha um cartão gigante que dizia: “De mim para ti”. E foi isso que me fez gargalhar tanto e tão alto, desta vez mais baixinho e contido para não acordar. Saí para a rua. Queria agradecer-lhe. Ouvi uma espécie de sirene ao longe e percebi que era o som do meu despertador. Eram horas de acordar mas não queria. Não podia. Não agora que ia conhecer o meu mimo pessoalmente. O barulho irritante da sirene/despertador parou. Mas comecei a ouvi alguém a chamar o meu nome ao longe. Prestei atenção à voz. Era o meu marido a tentar acordar-me. Não liguei e fui em direcção ao mimo. Assim que cheguei junto a ele deu-me o enorme ramo de flores de plástico. Agradeci enquanto lhe tentava pegar sem o deixar cair. E qual não foi o meu espanto ao ver que o mimo já não tinha a cara pintada. Percebi finalmente porque me era tão familiar e porque me tinha deixado logo cativar pelo seu sorriso encantador. Era o meu marido. Ele sorriu-me e disse “Amo-te” muito devagarinho, para eu perceber, porque não saia som nenhum da sua boca. Ouvi gritos ao longe a chamarem por mim. A voz do meu marido insistia em tentar acordar-me mas já não era preciso. Ele estava ali comigo, naquele lugar fantástico. Ignorei a sua voz e beijei o mimo. O tempo pareceu parar e…
Querem saber o que aconteceu a seguir? Não posso contar mais. Apenas vos posso dizer: Tentem tornar os vossos sonhos realidade, mas ao contrário.
segunda-feira, 23 de maio de 2011
Fauno
Fantasmas de um passado marcado por um futuro incerto
assombram-me o inconstante presente num coração aberto
e ligado a tudo: medos, arrependimentos, fobias, alegrias
Gnomos, duendes, fadas, feiticeiros escoltam o ser maior, repleto de amor
o Fauno faz-me sonhar e ser transportada para outro lugar
O receio inicial depressa se transforma em algo diferente, algo ancestral
A suave melodia entranha-se, tão doce como mel,
e perdura, iluminando a noite escura
Becos sem saída, caminhos que vão dar a lado nenhum
Encruzilhadas,
mãos cheias de nada, sussurros bafientos que me tentam
e em vão Eu tento não me tentar a
olhar em frente
para ti
olhar para o lado
para ti
Mas para onde quer que olhe
é a ti que te vejo
e revejo-me em ti
e a toda a magia de um ser mágico por defeito
de tão perfeito ser ou não ser
e Eu, o que serei? O que seria sem ti?
Tu, ÉS!
quarta-feira, 18 de maio de 2011
Deixa-me sair
Refém
de mim mesma no meu próprio mundo
sinto medo de tudo
dos meus próprios sentimentos
dos meus díspares pensamentos
quero fugir mas não sou capaz
de deixar tudo para trás
quero alcançar uma outra realidade
uma liberdade liberta de mim
quero deixar de ser assim
deixar de não gostar de ser quem sou
por tão fraca ser e por t(r)emer
do tanto ou tão pouco que dou
sem nenhum motivo aparente
a minha mente não me mente
nem me deixa descansar
somente detestar
este meu ser demente
e insignificante ao teu olhar
terça-feira, 26 de abril de 2011
Caminho
Caminho
Rumo ao incerto
Com a certeza de que nada levo na bagagem a não ser tudo
Tudo o que fui semeando ao longo dos anos
Espero colher em breve
Passam os dias, os meses, os anos,
O tempo continua ameno
Assim como a vontade de querer sempre o que não se tem,
O que não se pode ter
Pode-se ter tudo, pode-se querer tudo
Neste mundo de sonhos encontro alguma paz nos pesadelos
A realidade mata-me lentamente
A irrealidade desperta-me os sentidos
Caminhando sigo o meu caminho
Ora cheio, ora vazio
De mim e de ti
E sinto que morri
Para renascer novamente
domingo, 24 de abril de 2011
Livre
Habituados à escuridão de uma noite sem dormir, os seus olhos começaram a pestanejar aos primeiros indícios da manhã. O sol ainda nem tinha acordado, mas o azul já havia começava a romper o negro e a esconder as estrelas... O corpo cansado recusava-se a colaborar e sair da cama, começava a parecer uma empreitada demasiado ambiciosa. Tinha sonhado com estas férias durante meses. Sonhos reconfortantes com os pequenos privilégios dos que não cumprem horários e diante dos quais os dias se estendem intermináveis. Imagens que o tinham ajudado a suportar o trabalho enfadonho e forçado e a aturar as conversas de chacha sobre futebol e mulheres fáceis dos colegas, enquanto fazia a contagem decrescente dos dias que faltavam... Estaria livre disso tudo em breve...
E agora, apenas 3 dias depois, da varanda do quarto de hotel que alugara na praia, tudo parecia vazio e insignificante. Tudo perdera rapidamente o brilho e o calor. Tinha querido fugir da cidade, ir para onde não o conhecessem, viver dos pequenos prazeres dos dias de verão - o sol, o mar, os livros, os cantos das gaivotas, o toque da areia, os cheiros dos jardins e os sons da praia e das esplanadas...
Tinha-se esquecido que, mesmo longe de casa, os fantasmas não tiram férias. A angústia continuava a adormecer enroscada no seu peito, as unhas cravadas bem fundo, o abraço frio da solidão não se esquecia de o envolver onde quer que fosse, para mostrar a todos que lhe pertencia e o desespero mantinha a costumeira emissão em estéreo na sua cabeça - pensamentos negros e perturbantes a todas as horas do dia..
Ao fim do segundo dia, as pessoas começavam a tornar-se tóxicas e difíceis de suportar- as brincadeiras barulhentas dos miúdos, as gargalhadas e as conversas animadas, as trocas de afecto entre namorados.... O mundo ignorava-o constantemente. Não havia espaço para ele. Tinha tentado de tudo para ser "igual" aos outros, mas o seu caminho tinha sido sempre o mais ermo possível, sempre no sítio errada à hora errada, sempre com a piada que ninguém ouviu, o comentário que ninguém percebeu, o sorriso mal-entendido. Apenas um rosto na multidão, que não se distingue dos demais, por ser demasiado igual ou fácil de esquecer.
Inspirou o cheiro a maresia uma última vez, entrou no quarto e sentou-se na cadeira de palhinha ao lado da cama.. Acendeu um cigarro e fumou-o na penumbra, em silêncio, como passara a maior parte da sua vida.
A última coisa que ouviu foi um estalo ensurdecedor, quando a bala abriu caminho até ao cérebro... Estava livre - os fantasmas só assombram os vivos e a dor só a tem quem ainda deseja ter o que não pode.
segunda-feira, 4 de abril de 2011
SONO_IV
Jota está de rastos. Nunca se sentiu tão desanimado como agora.
Sai de casa e dirige-se para o sítio do costume. Ao chegar à estação de comboios vai direito ao café, onde vê Nina, Manecas e o Sr. Anselmo, todos em amena cavaqueira, numa pausa para o café.
O Sr. Anselmo vê-o chegar. Repara no seu ar abatido e num tom irónico diz-lhe:
- Bom dia, alegria!
Jota tenta esboçar um sorriso, mas não consegue. Todos reparam no seu olhar triste.
- Francamente, Sr. Anselmo! Não devia ser tão mauzinho! – Nina está furiosa.
Manecas não faz nenhum comentário. Limita-se a observar Jota, enquanto pensa:
Coitado do rapaz! Agora é que ele perdeu mesmo o ânimo todo. Para além de estar a voltar ao que era, aquele seu olhar vazio, também está triste. Mas o que é que lhe terá acontecido no outro dia?
Jota pergunta a Nina quantos recheios diferentes têm as bolas de berlim.
- Ena! Estou a ver que gostaste. E tu que nem querias provar. Tenho uma data deles. O recheio tradicional com canela, mista com ou sem creme, chocolate, manteiga de amendoim, natas, queijo philadelphia…
Jota interrompe-a e pede-lhe:
- Quero levar duas de cada em caixas separadas, se faz favor.
Nina sorri-lhe satisfeita e começa a despachar o pedido.
- E, enquanto espero, aproveito para lhes agradecer tudo o que têm feito por mim, e para me despedir.
- O QUÊ?! – gritam os três espantados ao mesmo tempo. O Sr. Anselmo acrescenta logo de seguida:
- Porquê?!
- Porque desisto!
- Não podes fazer isso! – diz-lhe Nina com ar preocupado.
- Posso, devo, e é o que eu vou fazer.
- Mas não devias! – Nina passa de preocupada a irritada.
- Porquê?
- Porque adormeceste pela 1ª vez em toda a tua vida no dia em que a viste. Isso deve querer dizer alguma coisa! E se ela voltar a aparecer?! – lembra-se Nina de repente.
- Não volta! Sinto que a assustei da outra vez e que por isso mesmo ela não volta a aparecer aqui na estação.
- E as rondas que tens feito nas redondezas? – pergunta-lhe Manecas.
- Acabaram-se.
- Mas afinal o que é que te aconteceu? – Manecas continua intrigado com o que lhe terá acontecido no dia em que apareceu com um olho negro e a deitar sangue do nariz.
Jota percebe que os amigos continuam curiosos em relação ao que lhe aconteceu e decide contar-lhes a verdade.
- O que lá vai lá vai, e não há nada a fazer, mas acho que merecem saber o que me aconteceu.
E Jota relata os acontecimentos dos dias anteriores.
Fala-lhes dos caminhos de terra batida que encontrou, da estrada interminável, do cruzamento que não o levou a lado nenhum e até mesmo do caminho do meio, que pensava ser o correcto. Mas depois da valente tareia que apanhou dum matulão e da maneira como conseguiu escapar aos rufias do bairro, parece-lhe ser impossível lá voltar, porque eles se uniram para guardar as ruas e ruelas do bairro inteiro.
Quanto Jota acaba de contar as suas aventuras, o pequeno grupo, até então calado, assim se mantém, por breves momentos.
Estão todos com ar intrigado e pensativo.
O Sr. Anselmo é o primeiro a quebrar o silêncio:
- Precisam de soluções? Olhem para o mapa das estações.
- Desculpe?! – agora é Jota quem fala.
E o Sr. Anselmo volta a falar:
- Por estranho que possa parecer, a tua “Estranha” vai aqui aparecer, amanhã, ainda antes do anoitecer.
- Desculpe, mas não o estou a perceber. – Jota está a ficar com um ar impaciente.
- Dizer isto até me arrepia, mas a tua “Estranha” tem a mania de fazer uma estação por dia.
- Mas o que é que você está para aí a dizer? – Jota perde a calma e compostura habitual e nota-se que está a ficar exaltado.
Manecas chega-se perto dele, põe-lhe as mãos nos ombros e diz-lhe baixinho:
- Calma Jota. Acho que estou a perceber. Deixa-me confirmar se estarei certo.
Olha para o Sr. Anselmo e diz-lhe o seguinte:
- Vamos lá ver se percebi Sr. Anselmo. Está a querer dizer-nos que a “Estranha” só aparece nesta estação de 12 em 12 dias, que é o número de estações que esta linha de comboios tem. Ou seja, pelas suas contas, ela vai reaparecer aqui amanhã durante o dia?
O Sr. Anselmo esboça-lhe um sorriso seco, afirma que sim com a cabeça, olha para Jota e diz:
- E posto isto, tenho dito. – e vai-se embora.
Jota começa a fazer contas de cabeça e diz-lhes:
- Mas isso é impossível! O que ele acabou de dizer não faz sentido. Já se passaram mais de 12 dias desde que a vi pela 1ª vez.
- O que tu estás para aí a dizer é que é impossível. O Sr. Anselmo nunca se engana a fazer cálculos. Se ele diz que são 12 dias é porque são mesmo 12 dias.
- E se eu te disser que é o meu 16º dia de buscas sem resultado?!
Ficam os três em silêncio, com um ar pensativo e interrogativo a olharem uns para os outros.
O ar pensativo de Manecas começa-se a descontrair e o pequeno sorriso que se começa a notar, alastra-se até um sorriso enorme de orelha a orelha, seguido de uma sonora gargalhada.
- Olha, passou-se! – diz Nina com ar espantado.
E Manecas começa então a explicar:
- E se eu lhes disser que estão os dois certos?
Nina interrompe-o logo para lhe dizer que ele ficou doido de vez. Manecas ignora este comentário e continua o seu raciocínio.
- Basta o Sr. Anselmo não ter contado com os fins-de-semana. E o Jota contou-os porque nunca falhou um dia de buscas, – olha para Jota e acrescenta – sem resultado, certo?
- Isso assim quer dizer que ela vai voltar a aparecer amanhã?! – O olhar triste de Jota desaparece por um breve momento ao dizer isto, e é substituído por um inconfundível brilhozinho nos olhos.
- Podes ter a certeza! O Sr. Anselmo pode ser muito esquisito e ter aquela maneira caricata de falar, mas com cálculos e números nunca se engana.
Jota ainda não sabe se acredita no que acaba de ouvir e olha para Manecas, à espera de uma confirmação. Manecas percebe que Jota tem dúvidas em relação ao assunto. Põe o ar mais sério que consegue e acena afirmativamente com a cabeça.
Jota guarda as duas caixas cheias de bolas de berlim e pede a conta a Nina.
Ainda tenho que me encontrar com o Hugo “Boss” para lhe dar estas delícias.
Está a pensar isto quando Nina o assusta de repente. A rapariga começa a gritar eufórica porque se lembra que na última vez que viu a “Estranha” na estação, Manecas encontrou um dos seus girassóis. Foi no mesmo dia em que Jota a viu pela 1ª e única vez até à data. Nina reparou que ela saiu apressada. Algo estranho, porque ela costumava ter sempre um passo lento e um ar muito calmo. Alguém lhe deu um encontrão e ela deixou cair a sacola onde traz sempre um molho de girassóis. Apanhou-os apressadamente, mas deixou ficar um esquecido no chão. Manecas apanhou-o com a intenção de lho devolver, mas no meio da confusão, perdeu-a de vista. Então, guardou-o num copo alto com água, que pediu emprestado a Nina, na pequena sala dos Perdidos e Achados. É uma sala pequena, com uma janela, onde bate o sol durante grande parte do dia. Manecas adora o cheiro que o girassol liberta. Acha que é reconfortante e sente que o acalma. O Sr. Anselmo que não sente nada, nem sequer o cheiro, costuma dizer-lhe:
- Rapaz, ganha mas é juízo, porque já tens idade para isso.
Nina também não sente nada, mas não se atreve a gozar com o amigo.
- Nina, ainda bem que te lembraste do girassol perdido, porque eu já me esquecia outra vez de lhe dizer. Olha vou sair mais cedo, aproveito e mudo de roupa. – Põe o braço à volta do pescoço de Jota e começa a puxá-lo. – Vamos lá?
- Vais sair mais cedo?
- Vou Nina. Tenho ensaio antes do concerto. – Manecas olha para ela com ar chateado. – Não me digas que te esqueceste!
Nina sorri para ele e encolhe os ombros. Manecas não resiste ao sorriso e sorri também.
Os dois afastam-se do café e caminham em direcção à pequena sala.
- Concerto? Tens uma banda?
- Não é uma banda, é um grupo de percussão. Não deves saber, mas não ambiciono ser segurança para sempre. O meu sonho é ser percussionista profissional.
Jota fica admirado com esta revelação, mas depois lembra-se de já ter visto Manecas a andar de bicicleta pela rua, com um djambé pendurado às costas.
- Vê lá se apareces. É na Praça Central às 21h00.
Jota, que já está a pensar noutras coisas, nem se lembra de lhe responder. Manecas repara na falta de resposta, mas não liga. Já o conhece e sabe que esta é uma reacção normal da parte dele.
Quando Jota entra na pequena sala, reconhece de imediato aquele cheiro tão distinto dos girassóis. Inspira devagarinho até sentir que o peito lhe vai rebentar com tanto ar.
- Aqui está ele! Cheira tão bem! É estranho como é que o cheiro se mantém durante tanto tempo.
E ao dizer isto começa a despir a farda para trocar de roupa.
Jota olha para ele e fica vidrado. Manecas começa a sentir-se incomodado quando repara no olhar fixo de Jota no seu corpo. Jota percebe o incómodo que está a provocar no amigo e diz-lhe:
- Desculpa, mas não consigo deixar de olhar.
- Não me digas que nunca tinhas visto tatuagens?! – diz Manecas em tom de brincadeira, mas sem conseguir disfarçar o incómodo que sente, pois não percebe porque é que Jota está a olhar para ele daquela maneira.
- Devias ser nadador-salvador.
- Desculpa?!
- Para poderes mostrar a toda a gente que tens um excelente físico.
- Obrigado! Manecas não sabe se deve agradecer, e como não estava à espera de tanta sinceridade, sente-se corar.
- Além disso, bem decorado. As tuas tatuagens são magníficas.
Manecas tem tatuagens tribais no corpo inteiro, que não se vêem quando tem a farda de trabalho vestida.
Mais tarde, Manecas conta tudo isto a Nina e ela exclama logo:
- Não me digas que ele se estava a fazer a ti! Olha, por essa é que eu não esperava! Eu que espero sempre tudo de toda a gente! Essa escapou-me, não sei como!
- Oh Nina! Que disparate! Lá estás tu a inventar!
- És muito ingénuo, realmente!
- Por acaso até nem sou. Mas ele é.
- Chama-lhe isso…
- Sabes os comentários inocentes que as crianças costumam fazer quando gostam ou não das coisas?
- Das coisas? Que coisas?
- Sei lá! De qualquer coisa. A sinceridade com que falam sobre tudo…
- Olha que as criancinhas não são todas assim.
- Está bem. Estou a falar da maioria. Foi isso que os comentários do Jota me fizeram lembrar.
- Achas que é atrasado?
- Não Nina! É apenas sincero como as crianças, é ingénuo e não tem maldade nenhuma no que diz.
- E?
- E foi bizarro! Senti-me apreciado, de um ponto de vista estético e…
Nina começa a rir divertida e interrompe-lhe o raciocínio:
- Não me digas que afinal tu é que te começaste a fazer a ele?!
- Pára lá com isso, Nina. Não houve nenhuma tensão sexual. Foi como se estivesse a falar com um irmão. Embora um irmão não aprecie, ou pelo menos não fale disso, na beleza do outro.
- Já percebi. Foi como se tivesses sido elogiado pela tua irmã ou pela tua melhor amiga. Por mim, por exemplo…
Manecas sente-se embaraçado ao ouvir isto, porque desde que Jota insinuou que ele estaria apaixonado pela amiga, que não consegue parar de pensar nela. E não é como melhor amiga, nem como irmã. Sente a atracção por si crescer de dia para dia. Não sabe o que lhe há-de responder, e é com enorme alívio que ouve o apito de um comboio e vê uma pequena multidão invadir o átrio da estação. Aproveita para lhe dizer “Até Já!”, enquanto algumas pessoas se dirigem ao café.
Já está vestido com as suas roupas. Veste calças de ganga, uma t-shirt estampada e tem calçados uns ténis confortáveis. Só lhe falta arranjar o cabelo, ou, neste caso, despenteá-lo. Quando saem da pequena sala, Manecas já vem com uma pequena crista, que encheu de gel e que nunca se nota, quando está a trabalhar, porque a penteia com risco ao lado. Despedem-se.
Jota apanha o comboio para o emprego. Sabe que não vai encontrar Hugo “Boss” porque ainda é cedo, mas quer lá ir deixar-lhe uma das caixas com as bolas de berlim. Tira uma caneta da mochila e escreve no papel que está a embrulhar a caixa:
“A partir de agora a Nina é a nossa “boleira” oficial. Tenho novidades. Até amanhã.”
Chega a casa e sente a ansiedade a crescer dentro de si.
Será que ela vai mesmo aparecer amanhã? Será que me vai reconhecer? E se isso acontecer? O que é que eu lhe digo? E se a vejo matar mais alguém? Não, ela não pode andar a matar pessoas a torto e a direito! Ou será que pode?! Deve ter sido coincidência. E se não foi?
Sorri.
Bem, é melhor tentar parar de pensar nela. Não vale a pena fazer planos na minha cabeça a tentar imaginar o que irá acontecer amanhã, porque bem posso pensar em todas as hipóteses possíveis e imaginárias, que me irá sempre escapar aquela que irá acontecer. É sempre assim. E amanhã não há-de ser diferente… Ah, mas deixa-me lá pensar no que é que eu gostava que acontecesse realmente… hum…
Está novamente a sorrir. Abre a porta do frigorífico para tirar uma cerveja preta, mas assim que fecha a porta, cai redondo no chão.
Desta vez foi tudo muito repentino. Não se sentiu zonzo, nem com tonturas, nem confuso. Não sentiu o sono a aproximar-se de si. Adormeceu instantaneamente como se alguém lhe tivesse dado uma valente paulada na cabeça. E ali ficou caído no chão, com uma garrafa de cerveja preta partida ao seu lado. E desta vez não dorme durante 8 horas seguidas. Dorme durante mais tempo. Tanto tempo, que perde o tão aguardado regresso da “Estranha” à estação de comboios.
Acorda assustado, à beira do pânico, mas ao mesmo tempo maravilhado com os sonhos que teve. Sente-se ainda mais atordoado e confuso com esta 2ª experiência do que da 1ª vez.
Adormeci e sonhei pela 2ª vez. Mas como?! Porquê?! Não a vi… ou será que vi e não me lembro?! Ou será que ela me viu a mim?!
E lembra-se de na altura ter pensado que sabia, sem saber como, que tinha sido a “Estranha” a provocar-lhe o sono.
Afinal estava enganado. Não é ela, são os girassóis!
Toma um duche rápido, veste-se, come qualquer coisa, pega na mochila e sai apressado em direcção à estação. No caminho sente-se doente.
Estou tão cansado!
Para além do cansaço, Jota está confuso e baralhado. Não consegue pensar. Tem a cabeça num turbilhão. Dói-lhe o corpo todo e está agoniado.
quarta-feira, 30 de março de 2011
SONO_III
Os dias foram passando, assim como as horas perdidas em buscas sem resultado. Mas se há coisa a que Jota está habituado é à rotina. E duas semanas passaram, num abrir e fechar de olhos, sem ele dar conta. A única coisa que se alterou no seu dia a dia foi o facto de andar à procura de alguém em concreto, e não a procurar desconhecidos, fingindo conhecê-los, seguindo-os e tirando-lhes fotografias para a sua Exposição de fotografia. A estranha mulher que mexeu consigo, e que lhe despertou a curiosidade e o interesse suficientes para andar perdido à sua procura nas últimas duas semanas, continua sem lhe sair da cabeça.
Também na estação de comboios as coisas continuam mais ou menos na mesma. A única coisa que mudou foi o tema das conversas do “trio maravilha”. Nina, Manecas e o Sr. Anselmo só falam de Jota, da “Estranha” e dos seus girassóis, e de um possível mistério que os envolve.
Todos os dias, apesar de não haver novidades, devido às buscas em vão, estes três amigos conspiram, supõem e inventam novas teorias, tentando adivinhar o que se passa.
- Há uma coisa que eu continuo a achar que não bate certo. – Manecas está com um ar pensativo.
- Não me digas que já começas a acreditar na história do Jota? – pergunta-lhe Nina com ar bastante divertido.
- Se queres que te diga a verdade, ainda não sei muito bem o que hei-de pensar. Mas suponhamos que sim, que a história que Jota nos contou é verdadeira e que ele nunca dorme… - Manecas faz uma pausa à espera de confirmação por parte de Nina.
- Ok – responde-lhe ela lenta e pensativamente.
- Continua a haver uma coisa que não me sai da cabeça.
- Porque é que ele anda atrás da mulher dos girassóis?! – Nina tenta adivinhar.
- Também, mas mais importante do que isso, segundo o que ele nos contou, ela matou uma pessoa. Como é que é possível?! Ela tem sempre um ar tão calmo e sereno. Parece ser boa pessoa e, afinal…
- As aparências iludem, Manecas. Não me perguntes porquê, mas eu acredito no que Jota nos disse, e acho que até pode não ter sido de propósito. Imagina que foi pura coincidência!
- Se não foi de propósito porque é que ela fugiu?
- Pois é, tinha-me esquecido. Ah, se calhar foi ele que matou o passageiro e…
- O QUÊ?! – grita Manecas espantado, interrompendo-a.
- Imagina que o que ele nos contou é verdade mas que foi contado ao contrário.
- Tu és mesmo doidinha. Acabaste de me dizer que acreditavas em tudo o que ele nos disse…
- E acredito! Mas pensa bem. Ele pode ter contado as coisas à maneira dele de modo a ficar favorecido. Cá para mim ele é que é o assassino e está a querer pôr as culpas em cima dela.
- Mas porquê?
- Porque ela deve ser a única testemunha do crime.
- Achas?
- Acho. Mas também pode ser por vingança.
- Como assim?
- Ela pode-lhe ter dado com os pés, ele ficou chateado com isso e resolveu…
Manecas interrompe-lhe o discurso novamente:
- Matar alguém e pôr-lhe as culpas em cima?
- Exactamente! – diz Nina dando uns pulinhos de alegria por Manecas ter percebido o seu raciocínio.
- Tu és um caso perdido!
- Quem diz é que é! – diz-lhe ela fazendo uma careta.
Jota aparece na estação de comboio esbaforido. Entra de rompante a correr e quase sem fôlego. Está com um ar bastante aflito, o olhar vidrado, a escorrer suor, tem um olho negro e o nariz a sangrar. Nina e Manecas vão em seu auxílio assim que o vêem.
- O que é que te aconteceu? – pergunta-lhe Manecas com ar preocupado.
- Estás num bonito estado, estás! – Nina olha para ele e logo de seguida troca um olhar desconfiado com Manecas.
Jota diz-lhes que prefere não falar do assunto. Só precisa de lavar a cara e depois vai à sua vida. Manecas leva-o até à casa de banho, enquanto Nina lhe prepara um lanche.
Enquanto Jota se refresca, Manecas tenta saber o que se passou e pergunta-lhe o que aconteceu. Mas Jota está tão transtornado, cansado e assustado que Manecas percebe que não vai ficar a saber nada e decide parar de fazer perguntas.
Saem da casa de banho. Quando Nina se apercebe de que Jota se está a ir embora, grita-lhe:
- Ao menos come qualquer coisa antes de te ires embora.
- Obrigado mas não me apetece. Fica para outro dia.
Nina, teimosa como sempre, embrulha à pressa duas bolas de berlim com creme e canela e vai a correr até apanhar Jota.
- Não nos vais contar o que te aconteceu, pois não?
- Hoje não.
- Mas porquê? – pergunta Nina com ar de criança que está a ser contrariada e que vai começar a fazer uma birra a qualquer momento.
- Porque foi o pior dia da minha vida.
O olhar de Jota é tão triste ao dizer isto que Nina sente um aperto no coração.
- Toma. São para o caminho. – diz-lhe ela com ar dócil.
Jota fica espantado e um pouco comovido com este gesto de Nina e o “Obrigado” que lhe consegue dizer, não é mais do que um pequeno murmúrio abafado.
Enquanto isso, tira dinheiro do bolso para lhe pagar, mas ela diz-lhe que não aceita:
- Estas são por conta da casa.
Jota agradece-lhe novamente e afasta-se.
Nina ainda lhe diz:
- Não te esqueças que podes contar sempre connosco para o que der e vier!
Jota que já está novamente a ir embora, não se vira para trás, mas levanta a mão num pequeno gesto de adeus.
Será que se pode chamar a isto amizade?! Ajudar um desconhecido sem pedir nada em troca?!
No caminho para casa, Jota sente fome e decide comer uma das bolas de berlim que Nina insistiu em lhe dar. Quando dá a primeira dentada, sente as pernas fraquejarem. Encosta-se a uma parede e deixa-se escorregar por ela abaixo até ficar de cócoras. Desaba a chorar, e ali fica, até se esgotarem as lágrimas.
Afinal o pior dia da minha vida acabou em beleza com estes bolos. São uma maravilha! Que delícia! Nunca comi nada assim.
Mas só come uma, pois não tem apetite para mais, e guarda a que sobrou na mochila. Sorri. Mas é um sorriso triste, porque embora tenha recebido ajuda, atenção e carinho por parte dos novos amigos, recorda os acontecimentos infelizes do dia inteiro e, pior do que isso, perde pela primeira vez a esperança de reencontrar a “Estranha”.
Fazes-me falta!
Chega finalmente a casa. Está morto de cansaço e todo dorido da tareia que levou. Prepara o seu merecido banho de imersão. Vai buscar uma cerveja preta ao frigorífico e mergulha o seu corpo na água quente. Relaxa pela primeira vez no dia inteiro, pensa em tudo o que lhe aconteceu nos últimos dias e em como as coisas se descontrolaram sem motivo nenhum aparente.
Há uns dias atrás:
Jota passa a noite inteira na Net a pesquisar informações sobre os arredores da estação de comboios. Percebe que à volta do pequeno bairro que já conhece tão bem como a palma das mãos, existem campos e descampados, diversas plantações, algumas casas e um enorme casarão, supostamente abandonado. Não encontra nada acerca de plantações de girassóis naquela zona, a não ser que não é a altura certa para elas. Jota acha isto esquisito.
Mas onde é que ela foi desencantar os girassóis se não é a altura deles?! Seriam de plástico?! Realmente o cheiro agradável não podia ser deles. Os girassóis nunca cheiram assim tão bem.
Na pesquisa encontra um mapa da zona. Imprime-o e guarda-o na mochila. Enquanto está a fazer isto pensa:
Tenho um bom sentido de orientação mas não quero perder mais tempo a procurá-la. Assim vou directo ao assunto. Ela deve morar numa daquelas casinhas minúsculas. Só pode!
E nesse mesmo dia Jota regressa ao caminho que tinha descoberto na véspera. Não pára na estação para não perder tempo, nem dá a volta do costume pelas ruas e ruelas do bairro mais próximo. Desistiu de fazer isso porque acha que anda a perder tempo por ali.
Sinto que não é aqui que ela mora.
Jota está numa zona com vegetação e uma estrada de terra batida cheia de curvas e contracurvas. Vai andando e de vez em quando avista casas isoladas no meio da vegetação. Anda bastante até que chega a uma recta, a perder de vista, onde a vegetação se adensa, dum lado e doutro da estrada.
Passando a recta interminável, chega finalmente ao sítio onde tinha estado no dia anterior, e depara-se novamente com três caminhos de terra batida distintos. Um em frente, um à direita e outro à esquerda.
Um deles é o certo. Um deles vai levar-me até ela.
Tira do bolso a bússola que tinha pedido emprestada a Hugo “Boss” e vê que o caminho em frente indica o caminho para sua casa.
No meio é que está a virtude, mas não é para minha casa que eu quero ir, é para a dela.
Observa o mapa. O caminho da direita tem algumas casinhas espalhadas por todo o lado.
Decide aventurar-se por aí.
Farta-se de andar mas não descobre nada. As casinhas estão abandonadas e quase todas em ruínas.
No dia seguinte mete-se pelo caminho da esquerda.
Farta-se de andar novamente e também descobre que o caminho não vai dar a lado nenhum.
No caminho de volta pensa:
Afinal no meio é que está mesmo a virtude. Ela deve morar a caminho de minha casa. Está mais perto do que eu pensava. Quem diria?!
É nesse caminho que existe o tal casarão. E eu a pensar que ela vivia numa casinha…
Chega novamente ao cruzamento.
Porque é que temos sempre de complicar tudo? Bastava ter seguido em frente. Raios me partam! Bem, agora já está. Fica para amanhã, que se faz tarde e vai escurecer em breve…
Ao sair dos terrenos, entra no bairro e sente-se ansioso pelo próximo dia e ao mesmo tempo mais descontraído do que de costume.
Está quase!
Já conhece alguns dos moradores do pacato bairro, os seus hábitos, horários e rotinas. Começa a pensar em distrair-se um pouco.
Quem sabe se seria bom fazer novos amigos?
Mas nunca nada lhe corre como planeado e desta vez as coisas até acabam por correr mal.
Sente um cheiro agradável no ar.
Que cheiro agradável! Não são os girassóis, mas cheira bem!
Jota lembra-se de ter reparado na sacola de girassóis que a “Estranha” levava debaixo do braço e de Nina e Manecas lhe terem confirmado que ela andava sempre com aquela sacola. Decide então, prestar mais atenção ao olfacto.
Se der com os girassóis, encontro-a.
Pensa isto e fecha os olhos, deixando-se levar pelo olfacto.
Anda por ali a deambular durante um bom bocado quando de repente é acordado pelos gritos de uma mulher:
- TARADO! Sai daqui seu tarado!
Jota abre os olhos e vê que está junto a um estendal duma varanda relativamente baixa. Está tão estremunhado e assustado com a gritaria, que não se apercebe logo o que se está a passar.
A mulher continua aos gritos, a insultá-lo. Jota percebe que enquanto estava distraído de olhos fechados a seguir o olfacto, foi parar ao estendal de uma rapariga. Observa o estendal e ri-se quando vê o que está pendurado.
Roupa interior feminina. Boa, Jota! Agora vais passar por tarado…
Mas o seu pensamento e sorriso depressa são interrompidos por um puxão. Jota sente os ombros serem puxados e revirados com força e dá de caras com um matulão.
Porra! De onde é que apareceu este gigantone?! Estou tramado! Não vou sair daqui vivo!
O matulão, depois de virar Jota para si, começa-lhe a bater. Jota não se defende, nem tenta fazê-lo. Foi apanhado de surpresa e não sabe como há-de reagir. Por isso não reage.
Nem vale a pena tentar explicar o que aconteceu. Este brutamontes não vai perceber nem acreditar em nada do que eu lhe disser.
O matulão continua a bater-lhe e a ameaçá-lo, e Jota cai no chão. Nisto, a rapariga grita:
- Deixa-o em paz! Não vês que não é normal? Nem tenta defender-se!
- Não é normal não! É um tarado! Ele já vai ver o que acontece aos tarados aqui por estas bandas! – diz o matulão com ar ameaçador.
Jota sente-se como se estivesse num videojogo de um combate de Wrestling.
Mas é como se alguém se tivesse enganado nas categorias de pesos e tivesse posto o mais fraco, eu, contra o mais forte, este matulão gigantone. Brutamontes dum catano! Ou como se um dos comandos, o meu, estivesse avariado!
Ainda no chão, a ser pontapeado pelo novo “inimigo”, ouve vozes de homens ao longe. O matulão também ouve e pára, por breves momentos, de lhe bater.
Se não aproveito para fugir, não saiu daqui vivo!
Levanta-se de um pulo, enquanto o outro está a acenar aos amigos e a gritar:
- Aqui! Venham cá!
E mais qualquer coisa que Jota não percebe nem está muito interessado em perceber porque já deixou de os ouvir. Quer é fugir dali o mais depressa possível e lá consegue arranjar forças para se pirar, tipo faísca.
Jota foge a correr e só pára quando já não aguenta mais. Deixa-se cair de joelhos. Está ofegante e afogueado.
Não é um bom bairro para fazer amigos, só inimigos. Nos próximos dias tenho de ter cuidado para não dar novamente de caras com o “gigante”.
Senta-se no chão, tira uma garrafa de água da mochila e bebe devagar. Fica ali um bocado a olhar em volta, até ter a respiração controlada. Levanta-se e desata a correr em direcção à estação de comboios.
De volta ao w.c.:
Já mais relaxado, sai da banheira, veste-se, pega num cobertor e vai até à varanda. Estende-se ao comprido na rede e ali fica, a olhar para as estrelas. A noite está fria e começa a cair uma chuva miudinha. Mas está-lhe a saber bem. Sente-se dorido mas vivo, e ali fica a noite inteira. A chuva e as lágrimas misturam-se, deixando-lhe a cara molhada.
Assiste ao nascer do sol na varanda, ainda deitado na rede. Levanta-se para ir tomar o pequeno-almoço. Prepara a mochila e sai, pronto para mais um dia de busca.
Se já estava desanimado ainda se sente pior quando dá de caras com a estação fechada.
Perdi a noção dos dias. É fim-de-semana outra vez. Raios partam!
A estação de comboios não tem movimento que justifique aos fins-de-semana e por isso está fechada.
Nina, Manecas e o Sr. Anselmo estão de folga.
Onde andarão os meus amigos? A divertirem-se, espero!
Dá meia volta e afasta-se da estação.
Ainda olha para trás, em direcção ao bairro dos arredores mas pensa que o melhor a fazer é não se aventurar por ali.
Não, hoje é melhor não me aventurar por ali. Estou todo dorido da tareia que levei ontem. Com a sorte que tenho ainda dou outra vez de caras com o “Gigante”.
E dá mesmo! A sua sorte é que o outro está virado de costas e não dá pela sua presença. E Jota não tem outra hipótese senão ir embora.
O caminho do meio vai ter que ficar par outro dia. Mas também quem já esperou até aqui…
No caminho de volta vai a pé até à estação seguinte e telefona a Hugo “Boss”. Este já tinha saído do trabalho e diz-lhe que está a caminho da praia. Desafia-o para ir ter com ele. Jota, como não tem nada para fazer, aceita e vai.
O dia está fresco e ventoso. Estão os dois sentados na areia, a sentirem o vento a bater-lhes na cara.
Hugo “Boss” fica espantado com o à vontade com que Jota lhe conta tudo o que lhe tem acontecido.
- Man, pareces outro! O que é que te aconteceu? Não sei quem é essa gente, mas que te andam a fazer bem, lá isso andam!
- É boa gente, sabes? Sinto que me compreendem, tal como tu. E que me conhecem, apesar de sermos desconhecidos. É estranho, não é?
- É, e não é. Olha aqueles casais que vivem juntos uma vida inteira e no fim acabam por descobrir que deveriam conhecer-se mas que no entanto nunca se chegaram a conhecer. Igualmente estranho, não é? Contudo, acontece muito frequentemente. É a vida, man! E as pessoas! Caixinhas de surpresas…
- Nunca sabemos o que vai sair lá de dentro! – diz-lhe Jota com ar triste. O amigo sorri.
- E agora? Tens quase a certeza de saber o sítio onde a encontrar mas não podes ir até lá. O que vais fazer?
- Ainda não sei. Se calhar está na altura de desistir.
- Então, man?! Desistir?! Depois de tanto trabalho? Porra! Até uma tareia levaste! Não podes desistir assim sem mais nem menos. Não agora, que já estás tão próximo!
- Não sei! Se calhar é um sinal ou algo do género. Acho que se tivesse de a encontrar, já tinha encontrado.
- Está parvo? Estás quase a encontrá-la de novo!
- E mesmo que a encontre? E depois?!
- E depois, nada! Depois logo se vê! Para que é que estás já a pensar nisso?
- As coisas nunca correm como imaginamos.
- Ah, tens medo?
- Medo de quê?
- Medo de te desiludires. Medo de sofreres. Medo de tudo e de nada. É mais seguro continuares sozinho e descansado, não é?
- Talvez! Antes de a conhecer sentia-me bem. Andava sempre sozinho mas sentia-me acompanhado. Agora que tenho companhia, que arranjei novos amigos e que consigo, finalmente, ter uma conversa normal contigo, sinto-me muito só. Nunca me senti tão só!
- Sentes a falta dela.
- Mas porquê? Como é que é possível?
- Sei lá, man! Porque é mesmo assim. Gostos são gostos. Não se discutem nem se escolhem.
Hugo “Boss” repara no olhar triste e vazio do amigo. Percebe que ele está mais distante do que nunca.
- Não desistas agora! Não desistas quando já estás tão próximo.
Jota encolhe os ombros, faz-lhe uma cara de “logo se vê” e levanta-se.
- Bem, vou indo.
- Já?
- Sim! Não tens umas ondas para apanhar?
- Ya!
Jota lembra-se da bola de Berlim que sobrou do dia anterior. Tira-a da mochila e dá-a ao amigo.
- Toma. Prova e depois diz-me o que achas.
Hugo “Boss” vê o embrulho do café e pergunta-lhe:
- Não foste tu que fizeste, pois não?
- Não. Foi a Nina, a minha amiga do café da estação de comboios.
- Man, estás mesmo em baixo. Já não fazes bolos nem nada.
- Acho que nem volto a fazer. Essas bolas de berlim são uma maravilha. Desculpa por já serem de ontem, mas para a próxima vez trago-te umas do próprio dia e com outros recheios.
- Ok. Obrigadinho e cuida-te.
- Tu também.
Ao ver Jota ir-se embora, a caminhar pela areia fora com ar abatido, Hugo “Boss” lembra-se de uma música que adora. Embora a ache muito triste, é apropriada para o momento:
“One step up and two steps back” (1). Esta música é um original de Bruce Springsteen, conhecido como “The Boss”, e também é cantada por Eddie Vedder, vocalista dos Pearl Jam, também ele praticante de surf. Hugo conhece bem as duas versões e é fã destes dois vocalistas. Por isso mesmo imagina a versão perfeita, um dueto entre os dois. E é esta versão que não lhe sai da cabeça e passa o resto do dia a apanhar ondas e a ouvi-la.
Hugo faz uma pausa para comer e fica maravilhado com a bola de berlim.
Jota tinha razão. Mesmo a ficar dura por ser de ontem, continua boa. Que delícia!
Guarda o papel que a embrulhava e onde está a morada do café.
Um dia destes tenho de lá ir abastecer-me.
E sorri ao pensar isto.
No caminho para casa Jota pega pela primeira vez em muitos dias na sua máquina fotográfica e recomeça a tirar fotos a desconhecidos.
Olá Anónimos! Sentiram a minha falta?
Não é com um ar animado ou entusiasmado que pensa isto, mas sim com um ar nostálgico.
E lá vai ele, parecendo estar a voltar ao que era.
Voltei à minha rotina. Voltei a ser uma sombra.
____________
(1) Tradução livre: “Um passo em frente e dois para trás”.
domingo, 27 de março de 2011
O caminho parece longo mas quando damos por nós chega ao fim.
- Ainda nem vou a meio. – digo eu.
Ao qual tu me respondes:
- É porque fizeste demasiadas paragens. Perdeste tempo com caminhos que não eram os teus. Tempo perdido.
- Tornaram-se meus a partir do momento em que os escolhi. Além disso, o tempo não se perde.
- Certo. Mas se tivessem sido as escolhas certas não estarias agora a meio do caminho mas sim no fim.
- Mas não tinha experimentado caminhos diferentes.
E é esta a grande diferença entre nós:
Eu gosto de experimentar, de me atrever a sair do passeio para poder passear na estrada.
Enquanto tu… tu preferes seguir o teu caminho “perfeito”.
Espero que tenhas tido um bom passeio, eu cá prefiro labirintos!
domingo, 20 de março de 2011
Espelho meu
Olho para ti e vejo uma alma pura e calma
sem nada a esconder, por tudo declarar
Ponderada em todas as escolhas
nunca deixando porém de procurar
e ir sempre mais além
Sabedoria
de quem jamais se atreveria
a trair a sua amada
em troca de quase nada
Gostava que fosses um espelho,
o meu espelho
E sei que sabes a felicidade que sinto
por saber sentir que o és,
Espelho meu!
quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011
Amar(ras)
Se querer é poder
Só não temos o que não queremos
Somos fracos, cobardes
Desistimos à primeira adversidade
E depois ainda nos queixamos
Da falta de sorte, do azar
Do mau-olhado que alguém nos possa mandar
Nunca admitindo que somos nós próprios os culpados
Somos as amarras que nos prendem
Deixamo-nos amar ou ser mal amados
Acabando sempre por desculpas arranjar
E por mais esfarrapadas que sejam
Teimamos em aceitar
Quando o que devíamos fazer
Era começar a acreditar em nós próprios
Sem nada a perder, nada a temer
Só não temos o que não queremos
Somos fracos, cobardes
Desistimos à primeira adversidade
E depois ainda nos queixamos
Da falta de sorte, do azar
Do mau-olhado que alguém nos possa mandar
Nunca admitindo que somos nós próprios os culpados
Somos as amarras que nos prendem
Deixamo-nos amar ou ser mal amados
Acabando sempre por desculpas arranjar
E por mais esfarrapadas que sejam
Teimamos em aceitar
Quando o que devíamos fazer
Era começar a acreditar em nós próprios
Sem nada a perder, nada a temer
domingo, 20 de fevereiro de 2011
Eu(fo)ria
Tenho tudo a acontecer ao mesmo tempo
E não paro um momento
Nem para descansar
Nem para respirar
Falta-me o ar
Ar a mais que não consegue dar a volta
Enche-me o peito
E sem despeito
Deixa-me a arfar, sem escolta
Falta-me ponderar
Pondero
Não no que quero
Mas no que deveria querer
Ser
Falta-me acalmar
Acalmava se pudesse
Agora não me apetece
Se fosse capaz mentia
Acerca deste estado de euforia
Mas não sei o que me falta
Se soubesse faria
a minha própria euforia
sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011
Fugiste-me
E se eu desistir?
Será que me deixas partir?
Assim sem mais nem menos
Sem tentar evitar o inevitável
A força que tens é inacreditável
Se não soubesse até poderia pensar que é preciso coragem
Mas sei
Chamo-lhe cobardia por não enfrentares os teus próprios medos
Por não me enfrentares
Fugiste-me
E eu deixei-te ir
Preferia estar a dormir
TU_MOR
Amor doentio
Quem me rasga a pele
Presa por um fio
Arde até ao fim o pavio
De uma vela de cheiro doce como mel
Mas é apenas o amargo que fica espalhado no ar
É o fel que se liberta de todo o mal que me fazes
Ainda assim quero voltar a fazer as pazes
E continuar a amar amar amar
O teu amor doentio não é um desafio
É um tumor
Confesso que…
Confesso que não sei o que hei-de confessar
O que pensava estar certo passa sempre a errado, incerto, incorrecto
Há um atrofio banal do qual não me desenvencilho
Como um verdadeiro empecilho que sei que sou e sempre serei
Há dias em que sinto de menos
Há dias em que sinto de mais
Não há cá meio-termo
Para crises existenciais
Penso que penso demais
Em factos banais de toda uma existência
Louca por defeito
Sem nenhuma virtude por excelência
Sonhos destinados
A transformarem-se em pesadelos
De tão emaranhados estarem
Dois ou três novelos
Estranha sensação a de tudo e nada sentir
Silêncio é tudo o que oiço
Nada é tudo o que penso
E daqui não quero sair
Confesso que sei que
Hei-de acabar por confessar aquilo que não queria
Tudo aquilo que me consome
É tudo aquilo que me enfastia
Não durmo nem estou acordada
Sinto-me atabafada à espera do sono que deveria vir em meu consolo
Mas apenas sonhos inteiros vêm desfeitos
Feitos em nada, (im)perfeitos
Será demência?
Seja o que for é uma indecência
Esta dormência demente
Que nada me deixa a não ser sentir-me doente
Nem frio
Nem calor
Insensível à dor
E a tudo em meu redor
Corrente de ar ou ar corrente a vaguear pela minha mente… Éter Na Mente?
Como uma serpente prestes a envenenar o ar
O mesmo ar que me corta a respiração
E que me faz perder a noção do meu bem estar
Confesso que sei sempre o que quero
Talvez esteja a ser um pouco possessiva
Mas só assim me sinto viva
Antes querer…
…do que morrer!
quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011
SONO_II
O que parece ser mais um dia normal na pacata vida de Jota depressa se torna no dia mais esquisito que ele alguma vez teve.
Numa carruagem de um comboio, sentado do lado da janela, vê entrar uma “Estranha” que lhe desperta de imediato a curiosidade. A mulher tem um ar calmo e sereno. É atraente, sem ser bonita e emana o cheiro mais agradável que Jota já sentiu em toda a sua vida. Jota percebe que ela está demasiado próxima dele para lhe poder tirar uma fotografia sem ela reparar e decide tirar-lhe uma foto mental em vez de “meter conversa”. Começa a observar e a registar todos os pormenores acerca desta atraente mulher. Ela tem estatura média. Cabelo castanho comprido, encaracolado e com muito volume, apanhado dos lados. Olhos grandes, castanhos, nariz direito e comprido. É muito pálida. Tão pálida como ele.
Acho que fazíamos um belo par, não achas?
Jota sorri ao pensar isto.
Está vestida com uma saia comprida muito colorida e com um top de alças branco. Tem umas sandálias castanhas calçadas.
O comboio está quase vazio e Jota muda de lugar para poder observar melhor a “Estranha”. Percebe então de onde vem aquele cheiro agradável que sente no ar. A mulher tem uma sacola de verga com alças pendurada no ombro. Dentro da sacola está um molho de girassóis. Jota inspira profundamente aquele cheirinho e imagina qual será a idade dela. Mas logo de seguida desiste de tentar adivinhar porque quando ela entrou parecia ser muito mais velha do que lhe parece agora.
Deve ser daquelas pessoas com idade indefinida a quem nunca conseguimos acertar na idade. Como diria a minha mãe, que também nunca foi boa a perceber a idade das pessoas, deve ter entre os 20 e os 50 anos.
Jota sorri novamente, ao lembrar-se disso.
Começa a ficar inquieto. Está mortinho por lhe tirar uma foto e inconscientemente agarra na máquina pois quer estar preparado assim que lhe surgir a oportunidade. Começa a sentir-se zonzo.
A “Estranha” senta-se junto de uma pessoa que está sentada à janela e Jota repara que esta encosta a cabeça, parecendo ter adormecido instantaneamente. De seguida a “Estranha” levanta-se e sai na paragem seguinte. Jota segue-a com o olhar sem ela se dar conta. Pega na máquina fotográfica e assim que se prepara para lhe tirar uma fotografia de perfil, a “Estranha” vira-se e apercebe-se de que está a ser observada e fotografada.
O que deveria ter sido uma foto do seu perfil, passou a ser uma foto do seu rosto virado de frente com uma expressão de…, Jota não percebe de quê. Não encontra definição imediata para o que registou e está a ver. Os dois trocam olhares por breves momentos. Mas é uma troca de olhares tão intensa e profunda que parece durar uma vida inteira. E Jota lembra-se do que costuma ouvir as pessoas dizerem que quando estamos a morrer, parece que toda a nossa vida e existência passam diante dos nossos olhos numa fracção de segundos. Foi mais ou menos isto que ele sentiu, não com o que passou, mas com o que ainda está para vir. E ficou bastante surpreendido com o que viu.
O que acontece a seguir é aterrador. Outra pessoa senta-se ao lado da que adormeceu e começa a gritar:
- Acudam! Ajudem! Está aqui uma pessoa morta!
Jota nem quer acreditar no que está a ouvir. Levanta-se e vai ver com os próprios olhos. A pessoa que parecia ter sido adormecida pela “Estranha” está realmente morta. Está com um ar muito calmo e sereno, a dormir para sempre.
Jota sente-se confuso e decide sair na paragem seguinte, inverter o sentido da viagem de modo a ficar na paragem em que a “Estranha” saiu, para poder ir à sua procura.
Já na estação observa a correria dos passageiros que saem apresados do comboio para irem apanhar outros transportes, sabe-se lá para onde.
Lá vão eles como formigas para as suas vidas.
O comboio apita, dando sinal de que vai seguir viagem. A estação começa a esvaziar. Jota dá por si, sozinho no meio do átrio, a olhar à sua volta. Está à procura de alguma pista da “Estranha”.
Esperava encontrar-te aqui. Onde é que te meteste? Vá lá, dá-me um sinal.
Repara que para além dele, as únicas pessoas que se encontram no átrio são:
o segurança da estação de comboios, um rapaz com ar jovem mas competente, a empregada do café da estação, também ela jovem, a limpar o balcão, com ar atarefado e um vendedor de jornais de meia idade, sentado num pequeno banco junto a um pequeno quiosque, com ar descontraído.
Quer perguntar ao segurança, à empregada do café e ao vendedor de jornais do quiosque da estação de comboios se viram a “Estranha” mulher mas não tem coragem. O segurança percebe que Jota precisa de ajuda porque este está com um ar perdido e confuso. Decide ir ao seu encontro para o ajudar. Mas o rapaz apercebe-se que o segurança está a ir na sua direcção e antes que este consiga chegar junto a si, sai disparado a correr pela estação fora. O segurança ainda tenta chamá-lo:
- Espere! Volte aqui!
Mas Jota só pára de correr quando percebe que não está a ser seguido pelo segurança “metediço”.
Raios partam o rapaz! Mas o que é que ele quer?
Ai que estúpido que eu sou. Devia ter aproveitado para lhe perguntar pela “Estranha”. Bem agora já é tarde. Pode ser que tenha sorte e ela ainda ande por aqui a passear. Nunca se sabe…
Passa o resto do dia a vaguear pelas ruas próximas da estação de comboios à procura dela mas sem sorte. Isto é algo que irá repetir todos os dias à mesma hora, como se dum ritual se tratasse.
Entretanto na estação de comboios, Manecas, o segurança, está junto ao balcão do café a falar com a amiga Nina, empregada do mesmo.
- Já me viste isto? Hoje deve ser o dia dos malucos. Primeiro a outra dos girassóis, que anda sempre com ar tão calmo, até parece que anda a flutuar pelo ar, hoje sai-me esbaforida a correr pela estação fora que nem uma doida. E agora este com cara de caso. Nunca o tinha visto por aqui.
Nina que também está com ar de caso responde-lhe:
- Cá para mim ele andava à procura dela.
- Achas?
- Acho. Reparaste como ele é tão pálido como ela?
- Claro. É impossível não reparar. Mas que dois.
A meio da conversa reparam que o Sr. Anselmo, dono do quiosque de jornais e vendedor no mesmo, acaba de chegar ao balcão.
- O que vai ser Sr. Anselmo? O costume? - Pergunta-lhe Nina, simpaticamente.
- As melhores bolas, são as do Artolas. - Responde ele.
Aqui convém explicar que o Sr. Anselmo tem o hábito bizarro de só falar a rimar.
E que Artolas é o Artur, dono do café onde Nina trabalha e que a especialidade deste café são as bolas de Berlim. Estas bolas de Berlim são diferentes de todas as outras. Para além do recheio tradicional, têm também os mais diversos recheios de diferentes sabores para todos os gostos. Desde chocolate, morango, amêndoas, natas, até mistas (com queijo e fiambre). Esta última é um sucesso. E Nina tem clientes que saem de propósito na estação do café para as comprar, indo depois a pé para casa ou para o trabalho, na estação seguinte, dizendo divertidos:
- Olhe menina, vou o resto do caminho a pé porque assim queimo as calorias que vou ingerir com estas pequenas delícias.
Nina serve uma bica cheia e uma bola de Berlim com o recheio tradicional e pergunta-lhe:
- Ó Sr. Anselmo reparou como a mulher dos girassóis ia hoje apressada? E no rapaz tão pálido como ela que apareceu no comboio a seguir? Parecia mesmo que estava à procura de alguém. Eu acho que era dela. Não acha?
- Sou só eu ou mais alguém acha que eles vêm do além?
Manecas ri-se divertido com o comentário e diz:
- Eh que exagero, Sr. Anselmo. São estranhos e pálidos, mas não são almas penadas. São de carne e osso.
O Sr. Anselmo vê um cliente parado junto do seu quiosque, bebe a bica à pressa, faz sinal a Nina para guardar o resto da bola de Berlim e sai apressado do café para o ir atender. Os dois amigos continuam a conversa:
- Como é que sabes? Já tocaste em algum? - Pergunta-lhe Nina que é tão curiosa que não descansa enquanto não descobre tudo sobre algo que a esteja a intrigar, e que para isso nunca exclui nenhuma hipótese, por mais tola que possa parecer.
- Por acaso já. Ela hoje chocou comigo e ia caindo.
- Chocou contigo? Como?
- Saiu a correr do comboio, a olhar para trás, e esbarrou comigo.
- Está a ver como é estranho? Ela anda sempre tão devagar e com ar tão calmo.
- Pois, mas hoje não. E depois de esbarrar comigo, deixou cair a sacola.
- Com os girassóis?
- Sim. Apanhou-a à pressa, desviou-se de mim e saiu a correr da estação.
- Que estranho.
- No meio da confusão, deixou ficar no chão um girassol que lhe caiu da sacola.
- A sério? - Nina não consegue disfarçar o espanto.
- Não, a brincar. Claro que é a sério. E eu ainda o apanhei e fui a correr atrás dela para lho devolver, mas perdi-a no meio da confusão de gente a sair apressada da estação.
- E o que é que lhe fizeste? Não me digas que mandaste fora. São tão bonitos.
- Não, claro que não. Guardei-o na salinha dos perdidos e achados. Arranjas-me um copo com água? O mais alto que tiveres? Vou deixá-lo lá, mesmo ao lado do meu cacifo. Vai ficar na mesinha em frente à janela. Assim apanha sol.
- Boa ideia.
- Cheira tão bem. Sempre pensei que o cheiro dela era de algum perfume que usasse, mas afinal não. São os girassóis que têm aquele cheiro. Ah é mágico. Tens de lá ir cheirar.
- Posso ir lá agora levar o copo de água. Ficas aqui a dar um olhinho?
- Fico. Vai lá. Vais ficar maravilhada.
Já é tarde. Jota desiste das buscas e regressa à estação. Está encostado a um pilar a espreitar os dois jovens que continuam a falar dos acontecimentos do dia. Está demasiado longe para conseguir ouvir a conversa, mas consegue perceber a amizade e até mesmo algo mais que une aqueles dois. O à vontade com que falam, a proximidade dos seus corpos, os olhos a brilhar sempre que olham um para o outro. Por uns breves momentos sentiu-se só no mundo e desejou vir um dia a ter alguém com quem partilhar uma intimidade assim. Lembra-se da “Estranha” e pega na máquina. Observa uma vez mais o seu rosto, para si perfeito, e pensa na legenda que a sua foto terá:
“Estranha Esperança.”
É essa a expressão tão difícil de decifrar no rosto daquela bela mulher: Esperança.
Jota continua zonzo e começa a sentir uma estranha sensação de formigueiro na barriga. Não se sente nada bem mas não percebe o que se passa consigo.
Fica por ali mais um pouco a pensar em tudo o que lhe aconteceu e decide que no dia seguinte irá à procura dela, uma vez mais, no mesmo sítio, à mesma hora.
Já é noite e chega a casa cansado. A busca não deu em nada e ele sente-se zonzo e confuso. Prepara-se para ir trabalhar mas algo de estranho se passa com ele. Sente-se doente. Pela primeira vez em muito tempo tem sono. Como perdeu o apetite decide saltar o jantar e ir tomar o seu banho de imersão:
Pode ser que relaxe um pouco.
Começa a despir-se, mas assim que fecha a torneira e apalpa a água morna para verificar se está na temperatura ideal, começa a bocejar descontroladamente e o sono é tanto que tomba no chão e adormece instantaneamente ali mesmo.
Este estranho ataque de sono é algo novo e perturbador.
Dorme durante 8h seguidas. Acorda de madrugada deitado no chão frio da casa de banho, em posição fetal, cheio de frio porque só tinha umas cuecas vestidas quando adormeceu. Está todo estremunhado e sente-se assustado quando percebe o que acabou de lhe acontecer:
Adormeci e sonhei pela 1ª vez.
Está atordoado e confuso com esta nova experiência e sabe, sem saber como, que foi a “Estranha” que lhe provocou sono. Precisa de respostas e sabe onde as conseguir. Tem de a encontrar novamente.
Como ainda não são 8h00 e devia estar a trabalhar, lembra-se que Hugo “Boss” deve estar preocupadíssimo consigo, a pensar que ele deve ter tido algum acidente e que provavelmente deve ter morrido. É a primeira vez que falta ao emprego. Nunca fica doente nem nunca se atrasa. Ainda por cima nem teve tempo de avisar. Como não tem telemóvel nem telefone em casa, sai a correr para a rua até encontrar uma cabine telefónica. Liga de imediato. Tinha razão: o “Boss” está muito preocupado com ele e quando Jota lhe conta por alto o que lhe aconteceu, a sua reacção é a seguinte:
- Oh não man, não me digas que estás com alguma doença terminal ou algo do género. Como é que é possível? Tu não dormes nem sonhas. Não pode ser. Não é possível.
- É possível sim. Foi o que aconteceu. Não tive tempo para nada. Foi tiro e queda.
- Mas como man?
- Sei lá! Desconfio do que terá sido, mas ainda não tenho provas. Preciso de tirar uns dias de férias. Pode ser?
- Claro man. Então não. Tira o tempo que for preciso para te pores bom. Preciso de ti aqui, logo que possas. Sabes como é… isto sem ti não é a mesma coisa.
- Ahahah vais sentir falta dos meus bolinhos, ah pois vais. – Diz-lhe Jota a rir para tentar animá-lo.
- Nem me fale nisso. Mas olha porque é que não me vens visitar, sempre que não estiveres a dormir (ao ouvir isto Jota dá uma valente gargalhada e interrompe a conversa):
- Que exagero! Só aconteceu uma vez. Nem sei se vai voltar a acontecer.
- Vais ver se não vai. É o princípio do fim, man. Mas voltando ao que te estava a dizer. Podes-me vir visitar e trazer-me os bolinhos milagrosos para o chá das 05h00 sempre que tiveres novidades. Sempre é uma maneira de me deixares a par da situação, e de me evitares uma depressão.
- Está combinado.
- E já sabes que podes contar comigo para o que der e vier.
- Eu sei. Obrigado. Tenho de ir.
- Fica bem e cuida-te, man. Cá te espero.
Hugo desliga o telefone e vai direito à casa de banho. Tem de ir refrescar a cara. Está tão preocupado com Jota. Percebe que o que lhe aconteceu não é normal nem pode ser bom sinal, e o pior é que sabe que não pode fazer nada para ajudar.
É esperar para ver, man. Não te preocupes, há-de correr tudo bem.
No dia seguinte Jota volta à estação, à mesma hora, na esperança de ver a “Estranha”.
No meio da confusão de gente a sair do comboio repara no “trio maravilha”, nome que dá àquele grupo de amigos. Mal sabia Jota que os seu caminhos acabariam por se cruzar.
Primeiro repara na empregada de balcão do café. É uma rapariga com ar muito jovem, baixa e magra. Tem uma cara bonita onde se destaca um nariz redondo e pequeno. Tem cabelo preto comprido, com franja curta. Veste-se de preto e usa um lenço colorido ao pescoço. Jota irá reparar mais tarde que ela deve ter mais de 30 diferentes porque costuma usar lenços todos os dias durante um mês inteiro, sem nunca os repetir. Irá descobrir também que ela, para além de gostar de lenços, quer ter sempre a garganta protegida, porque o seu sonho é ser cantora. E farta-se de trabalhar no café do Artur para poder pagar as aulas de canto particulares de que tanto gosta, pois ambiciona ser cantora de musicais. Tem um Piercing no nariz.
De seguida repara no segurança. Também tem um ar muito jovem. Ao contrário da rapariga, é alto, bem constituído, músculos bem definidos, testa alta, queixo quadrado e tem um ar competente e decidido. Está a observá-lo com ar atento quando de repente se ouvem os gritos de uma mulher.
O segurança sai disparado a correr para o sítio de onde se ouvem os gritos. Já se está a formar um amontoado de gente e Jota não consegue perceber o que se passa. Mas ouve um homem a falar alto:
- Acalma-te lá ó tótiço, se não queres que te faça o pescoço num chouriço.
Jota conseguiu perceber que fora o Sr. do quiosque quem falara e viu-o no meio de uma mulher e de um homem. O segurança chegou junto deles e perguntou:
- O que se passa aqui?
O homem respondeu:
- É aqui o velhadas (apontou para o Sr. do quiosque) que se está a meter com a minha mulher.
- Porque é que estás a mentir? Eu bem que vos vi a discutir. – Diz-lhe o Sr. do quiosque. E depois olha para a mulher e diz:
- Eu a pensar que a Sra. precisava de ajuda, mas de repente ficou muda.
A mulher olha para ele com ar embaraçado e diz:
- Obrigada. Não precisava de se ter incomodado. Foi só um mal entendido com o meu marido.
O marido da Sra. continua a refilar e o Sr. do quiosque ainda lhe diz:
- Vamos lá a acalmar, que eu só estava a tentar ajudar.
Ao qual o homem, que já se está a afastar, ainda reclama com ar bruto:
- Para a próxima mete-te na tua vida, velho dum raio, a Sra. tem aqui o marido, não precisa de ajuda nenhuma.
O segurança dá umas palmadinhas no ombro do Sr. do quiosque:
- Ó Sr. Anselmo, já tinha idade para ter juízo. Então agora mete-se com elas até quando os maridos estão por perto? Olhe que não devia. – Sorri divertido.
- Antes mal acompanhado do que só e chateado. Obrigada rapaz pela ajuda e conselhos que me dás. Está na hora de ir comer a papinha da tua amiguinha.
- Está na hora do lanche? Disfarce lá que eu assobio. – Põe-lhe o braço à volta dos ombros e vão os dois abraçados em direcção ao café.
Jota fica mais uns momentos, parado num canto a observá-los, e depois decide seguir caminho. Pensa em seguir o mesmo trajecto do dia anterior pelos arredores daquela estação de comboios, em busca da “Estranha”. Quando está prestes a sair da estação, Manecas vê-o ao longe e comenta com os outros dois o que andará aquele sujeito a fazer ali. É a segunda vez em dois dias que ali aparece e tem um ar suspeito, tão suspeito como a mulher dos girassóis.
Jota começa a ir todos os dias, à mesma hora ao sítio onde a viu pela 1ª vez. Apanha sempre o mesmo comboio e faz o mesmo trajecto de modo a ir dar à estação de comboios onde a viu sair. Chegado à estação, mete-se novamente pelas ruas mais próximas em busca da “Estranha” mas não há meio dela aparecer. Os dias passam e não há sinal dela.
O rapaz anda tão ansioso à sua procura que um dia Manecas, que o tem observado de longe, sem este saber, mete finalmente conversa com ele.
- Bom dia! É hoje que me vai explicar o que vem aqui fazer todos os dias à mesma hora?
Jota fica surpreendido, porque tinha tentado ser o mais discreto possível nas suas rondas e pensava que ninguém tinha reparado nele, muito menos aquele jovem, que parecia só ter olhos para a amiguinha. Afinal enganara-se.
- Não tens nada a ver com isso. – Sente-se envergonhado por ter tratado o rapaz por tu e pede desculpa:
- Desculpe tratá-lo por tu, mas parece-me que somos mais ou menos da mesma idade.
Manecas fica à espera do resto da conversa, que não chega, porque Jota se calou de imediato. Os dois ainda ficam uns momentos em silêncio, que Manecas quebra de seguida:
- Não tem importância. Dito dessa maneira faz sentido. – Estica-lhe a mão direita para se apresentar, ao mesmo tempo que diz:
- Sou o Manecas, prazer. Em que posso ajudar-te?
Jota não lhe dá um aperto de mão, limita-se a fazer um pequeno gesto, que faz lembrar um aceno e diz:
- Jota. Preciso de encontrar a “Estranha”.
- Desculpa?
Jota repete o que tinha acabado de dizer.
- Qual “Estranha”?
Jota pôs um ar pensativo, de quem está a tentar organizar as ideias para conseguir explicar tudo da melhor maneira, logo à primeira vez, mas Manecas é mais rápido e diz-lhe:
- Acho que percebi. Chamas-te Jota e andas à procura da mulher dos girassóis?
Jota responde-lhe com um redondo e sonoro SIM e Manecas repara no brilhozinho que de repente lhe apareceu nos olhos e sorri-lhe.
- Pensava que se conheciam.
- Não. – Responde Jota embaraçado. – Aliás, sim. Quer dizer, não. Só nos encontrámos uma vez. Mas eu preciso de voltar a vê-la.
- Deixa-me adivinhar… era atrás dela que ias a correr esbaforido na semana passada, quando vieste aqui parar à estação, pela primeira vez?
- Exacto.
- Porquê? O que aconteceu?
- É uma longa história.
- Ó meu amigo, tenho o dia todo. E tu também não me pareces ser muito ocupado. Sei que passas o dia a rondar os arredores da estação, por isso…
- Como é que sabes? – Jota interrompe surpreendido.
- Faz parte do meu trabalho observar pessoas.
- O que me podes dizer da “Estranha”? Costuma andar por aqui? Quando?
- De vez em quando. Mas olha que não aparece todos os dias, se é isso que queres saber.
- Então quando é que volta a aparecer?
- Isso é que eu já não sei. Dá-me ideia que não tem dias certos.
- Achas que a tua miúda sabe? Ou o homem dos jornais?
- A minha miúda? Qual miúda?
- A tua amiga do café.
-Porque é que dizes que ela é a minha miúda?
- Porque se não é, devia ser.
- Que disparate.
- Disparate o teu, em não assumires. Ainda por cima ela também sente o mesmo.
- De que é que estás a falar?
- Gostam um do outro. Assumam.
- Não fales do que não sabes.
- Sei o que vejo.
- Pois, deves ver mal. Porque não se passa nada entre mim e a Nina. Somos apenas bons amigos e companheiros de casa.
Por enquanto.
Jota resolve não tocar mais no assunto porque percebe que Manecas ficou um pouco confuso com esta descoberta.
- Mas achas que ela pode ajudar ou não?
- Talvez. A Nina é daquelas pessoas que têm mil e uma soluções para tudo, sempre. O problema é que quando começa a divagar já não pára e por vezes afasta-se tanto da questão inicial, que acabam por se gerar umas confusões tremendas. Mas pode ser que tenhas sorte e que ela se lembre de alguma coisa que me tenha escapado a mim.
Lá vão os dois em direcção ao café ao encontro de Nina.
- Bom dia. O que vai ser?
- Nada obrigado.
- Nina, apresento-te o Jota. Jota esta é a Nina.
- Prazer.
- Prazer. – Nina está com um ar curioso e entusiasmado a olhar para Jota. Já tem mil e uma histórias acerca dele e da mulher dos girassóis a formarem-se na sua cabeça.
- Nina, aqui o Jota precisa de toda e qualquer informação que tenhamos acerca da mulher dos girassóis. Lembras-te de alguma coisa? Quando é que ela costuma aparecer?
- Não sei. Não me parece que tenha dias marcados. Mas podemos ficar com o teu contacto para o caso dela aparecer. Assim escusas de vir cá todos os dias à sua procura.
- Obrigado, mas prefiro vir e procurar.
- Mas afinal porque é que a queres encontrar? – Pergunta Manecas.
E Nina responde muito à pressa:
- Ah já sei, não me digas que ela te assaltou naquele dia? Por isso é que saiu disparada a correr e logo de seguida apareceste tu esbaforido atrás dela…
- Nina que disparate! Não foi isso que aconteceu pois não? – Pergunta Manecas a Jota, só para confirmar.
- Não. – Jota sorri mentalmente e pensa:
Mas que grande imaginação que esta miúda tem. O amigo tem razão, soluções são coisa que não lhe falta.
- Disparate nada. Podia ter acontecido.
- Mas não foi isso que aconteceu. – E Jota, sem se dar conta do que está a fazer começa a contar aos dois desconhecidos tudo o que aconteceu. Conta-lhes toda a sua vida, desde que nasceu até hoje, passando pelo facto de nunca ter dormido nem sonhado até ter tido aquele breve encontro com a “Estranha” e de como tem a certeza de que foi ela que de alguma maneira lhe provocou sono e o pôs a dormir e a sonhar pela primeira vez. De como anda confuso e ansioso por a encontrar novamente e de como desconfia do seu envolvimento na morte do passageiro, ao lado de quem se sentou. Nina fica escandalizada com esta parte da história, mas parece achar tudo o resto normal.
Quando acaba, os dois jovens estão muito sérios a olhar para si.
Manecas é o primeiro a falar:
- Desculpa mas não estás à espera que acredite no que acabaste de me contar, pois não?
- Não. Mas achei que depois de me tentarem ajudar, o mínimo que podia fazer era ser sincero e contar-vos toda a verdade sobre mim e o que tenho passado depois de ter tido aquele encontro com a “Estranha”. Só assim poderiam ficar a perceber porque é que é tão importante voltar a encontrá-la. Eu sei que é muita informação, ainda por cima fora do normal, assim de repente, mas espero que compreendam e percebam a minha urgência em descobrir tudo o que possa acerca ela.
Jota olha para o relógio e diz-lhes:
- Desculpem mas está na hora da minha ronda pelos arredores. Obrigado e desculpem.
Desejem-me sorte. – Os velhos hábitos são difíceis de perder.
Nina e Manecas estão sem palavras. Mas pudera, depois de uma história incrível como esta, quem é que não ficaria?
sexta-feira, 21 de janeiro de 2011
SONO
E agora algo completamente inesperado... apetece-me contar-vos uma história. Chama-se "SONO" e começa assim:
A noite estava desagradável. A temperatura tinha baixado bastante. Estava a trovejar e a chover torrencialmente. O Sr. António estava desassossegado. Estavam a meio de Março e ele achava que não era caso para aquele temporal infernal que se fazia sentir. Para além de estar preocupado com a gravidez avançada da mulher, detestava o mau tempo. Em segredo, tinha medo de trovoada, desde pequeno. Achava que era uma vergonha um homem feito ter medo de trovoadas e por isso nunca tinha contado isto a ninguém, nem mesmo à mulher. Mas ela desconfiava, porque sempre que trovejava assim, o marido ficava uma pilha de nervos, algo que não conseguia disfarçar. Implicava por tudo e por nada, e ela sabia que era uma maneira de ele se distrair e não pensar nos estrondosos ruídos que o atormentavam tanto. Ela achava piada e fingia não perceber o que se passava, rindo-se sempre às escondidas e arranjando-lhe sempre coisas que o mantivessem ocupado. Mas naquela noite ela não lhe tinha arranjado nada para ele fazer. António estava tão inquieto que não conseguia parar de andar de um lado para o outro com os braços cruzados. Aquela noite ia ser diferente de todas as outras.
D. Alda passara a noite inteira a massajar a enorme barriga. Estava com dores, mas nada que se assemelhasse aos relatos horríveis das dores agonizantes que as mulheres que conhecia lhe tinham dito que ia sentir. A gravidez, do primeiro e único filho, em fim de tempo, tinha-lhe deformado o corpo franzino, algo que a entristecia muito e a preocupava mais do que qualquer dor, até então ligeira, que já sentira.
Sentiu que o bebé tinha dado a volta outra vez e tinha passado a noite inteira a tentar pô-lo no sítio certo novamente. Enquanto fazia isto pensava quanto tempo levaria o seu enorme corpo a recuperar a forma antiga. Estava tão farta de estar deformada. Sentia-se um monstro. Se não emagrecesse rapidamente achava que ia ficar deprimida.
O nascimento do bebé foi normal. Tão normal que a mãe quase não deu por ele. Sentiu uma guinada forte e pensou ser uma simples dor de barriga. Levantou-se, a muito custo devido ao peso da barriga, das pernas dilatadas e dos pés inchados, e foi à casa de banho. Sentada na sanita, fez força, deu uns gemidos de dor e se não fosse o Sr. António ter percebido a tempo que o que a mulher estava a sentir não era uma simples dor de barriga mas sim trabalho de parto, lá ia Jota pelo cano abaixo.
E foi assim que Jota, João Tavares, nasceu. Sempre discreto, até no seu próprio nascimento, característica que mantém até aos dias de hoje.
Jota era um bebé pequeno mas saudável, com uns lindos olhos azuis a contrastar com o cabelo preto, solto e com jeitos, e uma tez pálida e perfeita. Tinha os comportamentos típicos dos outros bebés. Chorava quando tinha fome, dores de barriga, ou qualquer outra dor. Respondia a estímulos e começou muito cedo a reparar em tudo o que o rodeava, parecendo interessado em descobrir tudo o que tinha à sua volta. Era um bebé perfeitamente normal, excepto numa coisa. Os pais depressa se perceberam que Jota era diferente de todas as outras pessoas. Começaram a reparar que o filho nunca dormia. A primeira reacção foi de susto. Ficaram muito assustados. Como é que era possível o seu bebé não dormir? Depois pensaram que o bebé dormia de olhos abertos, mas quando perceberam que afinal ele não dormia mesmo, decidiram contar ao pediatra que o assistia. Como o dinheiro não era nem nunca fora um problema para o jovem casal, ambos descendentes de famílias abastadas, puderam dar-se ao luxo de gastar fortunas na medicina e não só. No fim de fazerem todos os exames possíveis e imaginários, de passarem por todos os pediatras e especialistas em insónias, e de sujeitarem a criança a inúmeros tratamentos experimentais, que em vez de estarem a ajudar, só o estavam a perturbar e a prejudicar a saúde perfeita, todos chegaram a uma única conclusão:
- O vosso filho não precisa de dormir. Nasceu assim e tudo indica que é assim que vai crescer. – Disse o médico.
- Mas como é que isso é possível? – D. Alda nem queria acreditar no que estava a ouvir.
- Não sabemos. É o único caso de que temos conhecimento. Não existem registos de ninguém que tenha nascido sem nunca dormir nem sonhar. O vosso filho nasceu assim e isso nele parece ser perfeitamente normal. Os tratamentos não ajudam, antes pelo contrário, parecem que o põem doente. Deixam-no ansioso, confuso e com todos os outros sintomas que sentem as pessoas que sofrem de insónias. Lamentamos não poder ajudar mais, mas tirando o facto de nunca dormir, a vossa criança é saudável, inteligente e tudo nos leva a crer que terá um desenvolvimento e crescimento normal.
Foi então que o susto inicial passou a medo. Os pais de Jota não compreendiam o que se passava com o filho e começaram a ter medo dele. Evitavam todo e qualquer contacto com a criança. E Jota acabou por ser educado por várias amas, que tão assustadas como o jovem casal, arranjavam sempre desculpas para deixarem de tomar conta da criança, sempre que descobriam o terrível segredo.
Como a medicina não era capaz de resolver o que eles achavam ser uma doença rara, decidiram procurar a cura noutro lado. Viraram-se então para o lado espiritual e místico, e o Sr. António, fraco de cabeça como sempre fora, quase enlouqueceu com as mirabolantes histórias e patranhas que lhes quiseram passar, de maneira, não a ajudar o pequeno, mas a sacar mais dinheiro aos crédulos e ingénuos pais, que na esperança de encontrar uma cura para o pequenito, acreditavam em tudo o que lhes diziam. E foi assim, que nunca perceberam que não existia nenhuma cura para a doença do filho, porque o filho não era nem estava necessariamente doente. Apenas nascera diferente. Deviam sim ter arranjado maneira de lidar com tudo isso, algo que nunca aconteceu, o que fez com que Jota crescesse desligado emocionalmente, quer dos pais, quer das outras pessoas.
Em pequeno, era introvertido e tímido. Corava por tudo e por nada. Sabia que era diferente dos outros e sentia-se excluído. A família, sempre que os visitava, gozava com ele chamando-lhe bicho-do-mato, caladinho e coradinho. Os pais, que mantinham a maior distância que podiam em relação ao filho, fingiam não se darem conta de que isso o incomodava e ignoravam o gozo e as humilhações que o pequeno sofria por parte da restante família. Sentindo-se só, Jota arranjou uma maneira de se defender. Criou e cresceu num mundo só seu, tornando-se responsável e independente muito cedo.
Em casa nunca ninguém dava pela sua presença. Passava horas a brincar sozinho, a ler e a andar de bicicleta no enorme jardim que tinham à volta de casa.
Na escola gostava das aulas. Estava sempre disposto a aprender coisas novas, mas era um martírio quando os professores faziam perguntas, porque apesar de saber sempre as respostas era incapaz de responder. Era nas provas escritas que mostrava o que sabia. As provas orais eram um verdadeiro fracasso. Os intervalos eram um sacrifício para si. Não gostava dos colegas. Não conseguia comunicar com eles. Em vez de aproveitar os intervalos para ir brincar, sentava-se a um canto a comer o lanche e a observar as outras crianças.
Que brincadeiras mais estúpidas. Estes miúdos não sabem brincar. Não têm graça nenhuma. Mas que estúpidos.
Foi por esta altura que Jota começou a ter conversas imaginárias com os estranhos com quem se cruzava.
Um dia na hora do recreio, sentado no seu canto a comer o lanche, viu uma colega nova a falar com os outros miúdos.
Olha aquela deve ser a miúda nova. Nunca a tinha visto. Olá miúda nova!
Imaginou-se a sorrir e a acenar-lhe. E não é que nesse preciso momento a miúda nova olha na sua direcção e lhe sorri, como se estivesse a retribuir o seu sorriso imaginário. A primeira reacção de Jota foi espanto.
Será que ela me leu o pensamento?
Depois sentiu-se eufórico.
Ah e se as outras pessoas também conseguirem ler?
Pensou isto e sentiu-se envergonhado.
Espero bem que não. Era só o que me faltava.
Depois caiu em si e percebeu que tudo não tinha passado de pura coincidência e sorriu para si próprio. Mas foi um sorriso triste enquanto pensava:
És gira miúda nova. Gostava de conseguir falar contigo, mas infelizmente não sou capaz.
A miúda nova ainda olhou mais uma vez para Jota, mas ele já lá não estava.
E foi a partir deste dia que ele ganhou o hábito de ter conversas imaginárias com as pessoas à sua volta que lhe despertavam o interesse. Nos intervalos continuava sem brincar com os colegas mas começou a fazer o “jogo das conversas cruzadas” – nome que achou ser o mais adequado ao novo jogo que tinha acabado de inventar. O jogo era assim:
Jota ia observando os colegas a brincar e iniciava uma conversa imaginária com um deles. A conversa ia tomando rumo conforme as reacções e expressões de cada colega com que falava mentalmente. Se aparecesse outro colega com uma expressão mais interessante, a fazer algo que desse para iniciar outra conversa ou até mesmo a falar com outro colega de algo que Jota achasse interessante, desmarcava-se logo do primeiro colega dizendo:
Até logo!
E lá ia ele meter conversa com outro. De vez em quando levantava-se do seu cantinho e dava a volta pelo pátio do recreio fora em busca de novos amigos com quem meter conversa. Os outros miúdos, que sempre o conheceram estranho, nunca lhe ligaram muito. Uns por medo, outros por falta de interesse. A verdade é que Jota nunca tinha tido problemas com nenhum, aliás, sempre que achavam que ele poderia estar em perigo, por exemplo, quando nos seus passeios pelo recreio, se metia distraído pelo campo de futebol a meio de um jogo, sem se dar conta, os colegas tiravam-no de lá gentil e pacientemente. Chamavam-lhe o “sonâmbulo” porque parecia que andava a dormir em pé.
Mal sabiam eles que Jota não dormia, nunca.
Foi crescendo assim. E divertia-se imenso com as conversas imaginárias que mantinha com pessoas reais com quem não conseguia falar. Nestas conversas não havia lugar para mentiras, Jota era sincero e directo e os estranhos com quem “conversava” nunca se queixavam da sua sinceridade, antes pelo contrário, por vezes até lhe agradeciam. Para si isto foi muito bom enquanto durou.
Mas as coisas não duram para sempre e tudo mudou no dia em que, já crescido e farto da ignorância, maldade e mesquinhez de toda a família, começou a falar e nunca mais se calou. Começou a dizer tudo o que lhe vinha à cabeça sem pensar no que dizia nem nas consequências. O resultado foi trágico. A família, em vez de gozar, passou a ser gozada. No início, foi divertido. Ele vingou-se de todos. Mas deixou de ser divertido e começou a ser embaraçoso, porque quando quis parar, já não foi a tempo de conservar os poucos amigos do Liceu que tinha conquistado. Ser sincero tornou-se um vício. Não conseguia mentir. E como ninguém, ou quase ninguém, gosta de ouvir as verdades, perdeu os amigos que tinha. Decidiu deixar novamente de falar e isolou-se, tornando-se um jovem solitário.
Os pais pagaram-lhe os estudos e as férias muito longe de casa. Não gostavam de o ter por perto. Achavam-no demasiado esquisito. Uma vergonha e embaraço para familiares, vizinhos e amigos.
Depois de lá conseguir acabar o curso de enfermagem a muito custo, não pela matéria propriamente dita, algo que sempre o interessou e ao qual sempre teve o melhor aproveitamento, mas pelo contacto físico que a profissão requer, não teve coragem para ir a entrevistas de trabalho e ficou no desemprego e com 24 horas livres, dia e noite sem saber o que fazer.
Antes de estar a trabalhar no turno da noite fazia tudo e mais alguma coisa para ocupar as horas livres.
Como nunca gostou de passear à noite, por ser perigoso e porque a fauna que se passeia à noite pelas ruas anda sempre à procura de alguma coisa e suponha erradamente que ele também, decidiu aprender a fazer diversas coisas em casa, em vez de andar a passear.
No Verão fazia malha enquanto via televisão ou ouvia música e chegava ao Inverno sempre com camisolões, cachecóis e gorros quentinhos feitos por si.
Depois descobriu a Internet e passava as noites em fóruns de pessoas que sofrem de insónias e das mais diversas perturbações de sono. Descobriu que é realmente um caso raro, o único de que há registo. Percebeu que tinha que encarar o seu problema de frente e de vez. Continuava saudável, não sentia necessidade de dormir. O único problema que tinha era em ocupar tanto tempo livre.
Mais tarde descobriu a fotografia. Interessa-se por fotografia e é autodidacta. Acha que a melhor forma de aprender é experimentar, por isso, anda sempre com a sua máquina fotográfica digital pendurada ao pescoço. Gosta de registar as diversas expressões das caras dos desconhecidos com quem se cruza. Gosta de apanhar as pessoas distraídas e de lhes tirar retratos. Só tira fotografias a preto e branco, porque quer focar toda a atenção nas expressões dos estranhos. Acha que a cor pode ser uma distracção para quem vê as fotografias. Ambiciona vir a fazer uma exposição chamada “Anónimos”.
Como sempre gostou de andar a pé e de comboio, passa os dias a andar de transportes e a observar as outras pessoas. Os seus hábitos, tiques, o que vestem, de que falam umas com as outras, o que comem, o que bebem.
Quando terminou o curso, os pais deram-lhe um pequeno prédio de 3 andares, com ar abandonado por fora, mas remodelado por dentro, nos arredores de Lisboa, no qual vive sozinho. Não tem inquilinos, porque não quer e não precisa. Tem o prédio inteiro por sua conta. Dorme no último andar, num sótão amplo com kitchenette, wc e uma varanda virada para as traseiras do prédio, com vista para uma mata.
No 2º andar, tem montado um estúdio de fotografia, uma câmara escura e, na sala, tem uma enorme e excelente colecção de livros e discos de vinil. Eliminou cozinha e wc.
No 1º andar, está a preparar a sua primeira exposição de fotografia. Eliminou a cozinha e dois quartos. Ficou com uma sala enorme e wc.
Certo dia, num dos seus passeios diários ouviu um telefone de uma cabine de rua a tocar. Como não estava ninguém para atender, decidiu levantar o auscultador só para dizer que era engano.
Não sabe o que o levou a ficar tanto tempo a falar ao telefone. Secalhar foi por estar a falar com um estranho a quem não via a cara. A verdade, é que não só o ajudou, como o fez sentir-se melhor do que nunca. Quase se sentiu feliz. No dia seguinte, foi procurar trabalho num call-center. E, foi assim, que passou de enfermeiro, não praticante, a operador telefónico de um call-center, numa linha de emergência médica: “ASSP – A sua saúde primeiro”. O seu primeiro emprego.
É um empregado exemplar. Assíduo, pontual, responsável, decidido, perspicaz e, que acima de tudo, gosta do que faz, e isso nota-se. Se não é promovido, não é por falta de convites e tentativas da parte dos seus superiores, mas sim por falta de vontade. O facto de ser promovido a supervisor implicaria ter de falar com os colegas e tratar de vários assuntos cara a cara. Isso assusta-o e ele prefere manter o que tem.
Gosta de falar com as pessoas pelo telefone. Sente-se realizado por ajudar as pessoas que ligam para a linha de emergência médica para a qual trabalha. É calmo, discreto, introvertido, bem-educado, sincero. Diz tudo o que lhe vem à cabeça, não pensa antes de falar.
Hoje é um jovem de 25 anos que nunca dormiu nem sonhou desde que nasceu. Isto nunca lhe afectou a saúde. Nasceu assim e isso para ele é normal. Leva uma vida calma. Trabalha de noite, passeia e fotografa desconhecidos durante o dia.
É alto e magro. Mantém os lindos olhos azuis, o cabelo preto, solto e com jeitos, e a tez pálida e perfeita. É o mais discreto possível, pois gosta de passar despercebido para evitar o contacto com as outras pessoas. Geralmente veste gangas, t-shirts ou sweatshirts lisas e brancas, blusão desportivo com carapuço e calça ténis confortáveis.
Anda sempre de mochila às costas, com acessórios da máquina fotográfica, casaco impermeável para os dias em que chove, lenços de papel, pequena lanterna, carteira e chaves de casa. Tem ar de turista e quando algum desconhecido mete conversa consigo, seja por que motivo for, finge que não percebe, para não ter que falar com ninguém.
Jota não vai a restaurantes nem a cafés. Faz compras no supermercado mais próximo de casa sempre que precisa.
Vive num mundo à parte, criado por ele e só para ele.
D. Alda sente-se triste por saber que o grande sonho de um dia ser avó nunca se irá realizar. O marido sempre que a vê pensativa e triste a olhar para as fotografias de bebé do filho, sabe no que ela está a pensar e costuma dizer-lhe em tom de brincadeira:
- Deixa estar filha, não é caso para ficares tão triste. Já pensaste no que seria de nós se viesse outro como o pai? Dá graças a Deus por isso não estar nos planos do nosso rapaz.
A mulher sabe que o marido também fica triste por não vir a ser avô e que brinca com a situação só para ver se a anima. Mas acaba sempre por sorrir e lhe dar razão porque pensa que com a sorte que os dois têm ainda lhes calhava mesmo outro igual na rifa.
O Sr. António também costuma pensar na vida íntima do filho.
O raio do rapaz é tão estranho. Mas como é que é possível ele não gostar de ninguém? Não é carne nem é peixe. Não tomba para um lado nem para o outro. Como é que é possível alguém viver assim?
Não sabia que o filho se sentia atraído por mulheres, mas que a atracção desaparecia assim que elas abriam a boca. O chorrilho de disparates que ouvia nas conversas entre amigas era insuportável a maior parte das vezes, aborrecida noutras e hilariante noutras tantas. Jota acha as mulheres muito exageradas em tudo, sobretudo nas emoções. E com um grande defeito – não conseguem estar caladas, nem têm noção de quando se devem calar.
Enfim, falam demais.
Neste momento Jota está na fase da culinária. Começou a coleccionar receitas e a pô-las em prática.
Faz de tudo um pouco. Tem preferência pelos assados e pelas sopas. Costuma fazer um panelão que lhe dura para uma semana inteira. Adora sobremesas. É especialista em bolos, queques e tartes. Todos os dias faz um bolo, queques ou tarte diferentes e leva para o intervalo das 05h00 a contar com Hugo “Boss”, que tira o intervalo na mesma altura que ele para se deliciar com o que Jota lhe traz.
– Obrigadinho man. Se não fossem estes deliciosos incentivos caseiros a meio da noite, não sei como é que aguentava. És o maior. – Jota não lhe responde mas sorri sempre que houve estes comentários.
Como tem os horários diferentes de todas as outras pessoas, almoça quando chega a casa do trabalho, por volta das 9h00 da manhã. Sopa e o que tiver sobrado do dia anterior. Tem o hábito de comer de 4 em 4 horas. Por volta das 13h come fruta e um iogurte, que tem sempre na sua mochila, e às 17h também. Às 20h começa a cozinhar para ter tudo pronto para as 21h, hora a que janta. No trabalho tem dois intervalos. O 1º à 01h00, no qual come uma sandes de queijo fresco ou de requeijão com mel, nozes e alface, que preparou e levou de casa, e bebe um café com leite frio. O 2º intervalo é às 05h00, altura em que toma o pequeno-almoço: cereais com leite frio e a fatia de bolo, tarte ou queque que fez à hora do jantar.
Mais uma noite desgastante no call-center.
As bruscas mudanças de temperaturas parecem estar a afectar a maioria da população. Por estranho que pareça não são os mais idosos que se queixam mas sim os mais jovens.
- Realmente o tempo tem estado esquisito, mas não acho que seja caso para alarme. Estou farto de tanto alerta, credo! - Diz Hugo “Boss” a Jota, que se mantém calado mas atento à conversa. E Hugo continua a falar, como se estivesse a responder a alguma pergunta feita por Jota:
- Pois, também já reparei que o pessoal mais novo é muito mais descuidado do que os mais idosos. Ultimamente só se sabem é queixar: “Ai que me dói a garganta, ai que já me constipei, ai que estou com gripe, ai estou quem nem posso…” – Diz Hugo com uma voz fininha, mudando de seguida para o tom normal - É muito bem feito. Não têm cuidado nenhum. Não é por falta de aviso, não. O tempo está esquisito, e depois? Custa muito andar de t-shirt durante o dia, porque tem feito um calor abrasador, e com um casaco ou impermeável debaixo do braço porque tem chovido à noite e as manhãs estão frias? Não custa pois não? – Olha para a mochila de Jota que está pendurada na cadeira deste e diz: – Até tu, que és o gajo mais estranho que eu conheço andas precavido. – Jota olha para ele e levanta o sobrolho.
- Ok já percebi. És estranho mas não és parvo. – Jota acha o comentário tão sincero e inocente que não resiste e desata a rir. Ao qual o outro ainda lhe diz:
– Além disso acho que és o gajo mais porreiro que conheço, apesar de nunca falares comigo. És um bom rapaz e um bom ouvinte.
Ouve-se ao longe alguém a pedir a ajuda do “Boss” e lá vai ele. Não sem antes passar por trás de Jota, ir espreitar a etiqueta da t-shirt branca que este tem vestida e dizer:
– Fruit of the Loom? Nice! Obrigadinho pela paciência man, até já. - Jota vê-o ir-se embora e também repara no que ele tem vestido, mas sem fazer comentários. Está, como sempre, de calças de ganga e uma t-shirt colorida. Pendurado na cadeira tem um blusão de penas com carapuço. Jota acha-lhe piada. O excêntrico penteado que usa, cabelo castanho claro muito comprido, apanhado num carrapito, combina na perfeição com a sua personalidade e com o estilo de vida que leva. E pensa como é engraçado duas pessoas tão diferentes como eles os dois conseguiram ter e manter uma ligação com linguagem tão própria e um entendimento mútuo tão funcional. Os dois têm uma estranha mas sólida relação profissional e de amizade. Ambos sabem que apesar de tudo podem contar um com o outro para o que der e vier.
A princípio, o único elo de ligação entre o mundo real e o seu, é Hugo “Boss” Santos, supervisor no call-center, o único que consegue comunicar com Jota. É o oposto deste, mas consegue arrancar-lhe sorrisos de vez em quando. É a única pessoa que o compreende e respeita tal como é.
Hugo tem 35 anos. É extrovertido, falador, enérgico. Adora dar ordens e detesta que não as cumpram. Adora falar, principalmente de “gajas”. Nos tempos livres é surfista e praticante de desportos radicais. Costuma andar com nódoas negras e a coxear, devido aos tombos que dá, nos desportos que pratica.
“A vida é curta demais para tantas preocupações” e “Vive cada dia como se fosse o último.” - São as suas frases preferidas.
8h00 – fim de mais um turno. Já é de dia. Jota pega na mochila e no casaco e vai para casa almoçar.
Assim que acaba de almoçar é novamente hora de saída. Prepara a mochila para mais um dia de viagem e lá vai ele, metendo-se por ruas e ruelas, a descobrir novos caminhos, novas caras, novos “amigos”, novos “anónimos”.
Está sentado numa estação à espera do próximo comboio, entretido a observar os desconhecidos que estão à sua volta. Assusta-se com o barulho do horrível toque do telemóvel de uma Sra. loura que está sentada ao seu lado. Repara que a Sra. tem um ar um pouco espampanante mas que está muito bem arranjada. Ouve a conversa que ela tem com o marido:
- Bom dia querido. Oh não me digas. A sério? Às 19h? Então mas se calhar temos tempo. Reservei a mesa para as 20h. Queres que reserve para mais tarde? Ah mas porque é que também tens de os levar a jantar? Não lhes chega ter uma reunião fora de horas?
Ai mulher pára de fazer tantas perguntas. Tu não vês que ele não quer nem vai jantar contigo hoje? Seja jantar de negócio que não seja o mais certo é ir-se divertir… Tem mas é juízo e arranja um programa muito melhor do que o dele.
- Não querido, deixa estar que eu desmarco. Boa sorte com o negócio. Beijinho. Até logo. – Assim que desliga o telefone Jota vê a mulher marcar outro número.
Pronto, lá vai ela desmarcar o jantar à pressa. Está bem ensinada, sim senhor. Em vez de aproveitar e arranjar outra companhia…
Nem de propósito, parece que a mulher estava a ouvir os comentários de Jota:
- Olá amiga. Tudo bem? Olha, não marques nada com ninguém para hoje.
O meu marido tem um jantar de negócios… sim, outra vez… não estou nada chateada, antes pelo contrário. Deixou-me o visa. Por isso eis os planos: vamos as duas às compras, depois vamos jantar a um restaurante chiquérrimo que abriu na semana passada e ainda está na moda e depois…
Boa amiga, assim mesmo é que se fala. Jota sorri divertido com a decisão que a nova “amiga” tomou.
O seu pensamento é interrompido pelo barulho do comboio que acaba chegar.
Vê a loura andar em direcção à carruagem, para entrar:
Tchau amiga. Diverte-te.
A loura olha para trás. Jota sabe que ela está a sorrir da conversa que está a ter com a amiga, mas contudo retribui o sorriso como se fosse para ele próprio.
A loura vê-o sorrir para si e levanta a sobrancelha com ar interrogativo. Ele levanta a mão num gesto de adeus e sorri-lhe novamente. A loura não resiste ao seu sorriso espontâneo e simpático e retribui com um ligeiro piscar de olho. Jota fica a observá-la a entrar no comboio. Decide sentar-se novamente e apanhar o próximo comboio. Quando as portas se fecham vê que a sua amiga loura se sentou perto da janela e que continua em amena cavaqueira a falar ao telemóvel. Pensa que provavelmente está a falar de si e contar à amiga a troca de sorrisos e o piscar de olho consigo. Pega na máquina e tira-lhe uma foto.
Sentado novamente no banco fica com ar pensativo a olhar para a foto que acabou de tirar. Está a pensar na legenda que lhe vai dar.
Por baixo da foto que tira a cada desconhecido vai por, não o nome da pessoa, porque não sabe nem é algo que lhe interesse saber, mas uma espécie de legenda, onde vai escrever o que melhor definir a expressão de cada um – seja apenas uma palavra, uma frase feita, um poema, um número, até mesmo um conjunto de palavras desordenadas para o mero observador, mas que para Jota farão todo o sentido.
O tempo passa e ouve-se mais um comboio a chegar. Jota olha uma última vez para a foto antes de desligar a máquina e sorri. Já sabe qual será a legenda da simpática loura.
“Quem disse que o dinheiro não traz felicidade, devia ficar na miséria.”
Ainda a sorrir pensa na vida que ela terá. Não deve ter o casamento perfeito mas tem a sorte de ter dinheiro e amigos com quem partilhar e desfrutar os pequenos prazeres da vida.
E é assim que o nosso rapaz mantém contacto com os que o rodeiam.
Como não tem amigos, nem quer ter, entretém-se a observar as outras pessoas: os seus hábitos, tiques, o que vestem, de que falam umas com as outras, o que comem, o que bebem e até finge que as conhece.
Ao fim da tarde regressa a casa para se preparar para mais uma noite de trabalho.
Assim que chega à porta da entrada do seu prédio já tem as chaves na mão. Abre a porta e quando volta a guardar as chaves na mochila, tira de lá uma pequena lanterna que acende de imediato. Isto porque já há algum tempo que não há luz na entrada do prédio e Jota prefere andar com uma lanterna pequena na mochila do que ter de chamar alguém para fazer a reparação.
Sobe ao 3º andar. Pousa a mochila no sofá. Tira uma cerveja preta do frigorífico, agarra no livro que anda a ler e sai para a pequena varanda com vista para uma mata. Estende-se ao comprido na rede que aí tem pendurada. Àquela hora o sol já está fraco e corre uma leve brisa. Ali fica durante um bocado a beber a cerveja preta e a ler mais um capítulo do livro, até o dia se transformar em noite.
Sente-se feliz com estes pequenos prazeres da vida. Claro está que de vez em quando sente falta de contacto físico e de calor humano, mas prefere estar sozinho, rodeado pelas suas coisas, e pegado aos seus hábitos do que ter alguém a tirar-lhe tudo isso, a quebrar-lhe a sua rotina e a invadir-lhe o seu espaço.
No fim de mais um capítulo levanta-se e vai para a casa de banho. Abre as torneiras e põe a água a correr para o banho de imersão da praxe. Enquanto a banheira enche prepara a roupa que vai vestir. O interior do seu roupeiro é digno de ser visto. As roupas estão muito bem arrumadas e organizadas por cores. O que não é muito difícil porque Jota só tem calças de ganga azuis escuras, todas do mesmo tom, t-shirts e sweatshirts brancas e lisas, que apenas se conseguem distinguir pelas etiquetas das diferentes marcas. No armário ao lado tem uma série de blusões pretos desportivos com e sem carapuço. E em baixo uma boa colecção de ténis confortáveis e pretos, que parecem todos iguais, mas não são. A única pessoa que parece dar pela diferença da sua roupa e percebe que ele não veste o mesmo, mas sim igual todos os dias, é Hugo “Boss”, que tem o hábito de se meter com ele e ir espreitar a etiqueta das suas t-shirts “iguais” todas as noites, porque só assim é que as consegue distinguir.
Jota não se importa com o que os outros pensam nem está interessado em saber as suas opiniões acerca de nada nem sobre si mesmo. Mas no fundo sente-se bem com este pequeno gesto de Hugo, que demonstra a preocupação, compreensão e afinidade que sente por si.
Por volta das 22h00 sai de casa.
Apanha o comboio das 23h00 e lá vai ele para o turno das 00h00 onde fica até às 8h00.
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