sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

SONO



E agora algo completamente inesperado... apetece-me contar-vos uma história. Chama-se "SONO" e começa assim:

A noite estava desagradável. A temperatura tinha baixado bastante. Estava a trovejar e a chover torrencialmente. O Sr. António estava desassossegado. Estavam a meio de Março e ele achava que não era caso para aquele temporal infernal que se fazia sentir. Para além de estar preocupado com a gravidez avançada da mulher, detestava o mau tempo. Em segredo, tinha medo de trovoada, desde pequeno. Achava que era uma vergonha um homem feito ter medo de trovoadas e por isso nunca tinha contado isto a ninguém, nem mesmo à mulher. Mas ela desconfiava, porque sempre que trovejava assim, o marido ficava uma pilha de nervos, algo que não conseguia disfarçar. Implicava por tudo e por nada, e ela sabia que era uma maneira de ele se distrair e não pensar nos estrondosos ruídos que o atormentavam tanto. Ela achava piada e fingia não perceber o que se passava, rindo-se sempre às escondidas e arranjando-lhe sempre coisas que o mantivessem ocupado. Mas naquela noite ela não lhe tinha arranjado nada para ele fazer. António estava tão inquieto que não conseguia parar de andar de um lado para o outro com os braços cruzados. Aquela noite ia ser diferente de todas as outras.
D. Alda passara a noite inteira a massajar a enorme barriga. Estava com dores, mas nada que se assemelhasse aos relatos horríveis das dores agonizantes que as mulheres que conhecia lhe tinham dito que ia sentir. A gravidez, do primeiro e único filho, em fim de tempo, tinha-lhe deformado o corpo franzino, algo que a entristecia muito e a preocupava mais do que qualquer dor, até então ligeira, que já sentira.
Sentiu que o bebé tinha dado a volta outra vez e tinha passado a noite inteira a tentar pô-lo no sítio certo novamente. Enquanto fazia isto pensava quanto tempo levaria o seu enorme corpo a recuperar a forma antiga. Estava tão farta de estar deformada. Sentia-se um monstro. Se não emagrecesse rapidamente achava que ia ficar deprimida.
O nascimento do bebé foi normal. Tão normal que a mãe quase não deu por ele. Sentiu uma guinada forte e pensou ser uma simples dor de barriga. Levantou-se, a muito custo devido ao peso da barriga, das pernas dilatadas e dos pés inchados, e foi à casa de banho. Sentada na sanita, fez força, deu uns gemidos de dor e se não fosse o Sr. António ter percebido a tempo que o que a mulher estava a sentir não era uma simples dor de barriga mas sim trabalho de parto, lá ia Jota pelo cano abaixo.
E foi assim que Jota, João Tavares, nasceu. Sempre discreto, até no seu próprio nascimento, característica que mantém até aos dias de hoje.

Jota era um bebé pequeno mas saudável, com uns lindos olhos azuis a contrastar com o cabelo preto, solto e com jeitos, e uma tez pálida e perfeita. Tinha os comportamentos típicos dos outros bebés. Chorava quando tinha fome, dores de barriga, ou qualquer outra dor. Respondia a estímulos e começou muito cedo a reparar em tudo o que o rodeava, parecendo interessado em descobrir tudo o que tinha à sua volta. Era um bebé perfeitamente normal, excepto numa coisa. Os pais depressa se perceberam que Jota era diferente de todas as outras pessoas. Começaram a reparar que o filho nunca dormia. A primeira reacção foi de susto. Ficaram muito assustados. Como é que era possível o seu bebé não dormir? Depois pensaram que o bebé dormia de olhos abertos, mas quando perceberam que afinal ele não dormia mesmo, decidiram contar ao pediatra que o assistia. Como o dinheiro não era nem nunca fora um problema para o jovem casal, ambos descendentes de famílias abastadas, puderam dar-se ao luxo de gastar fortunas na medicina e não só. No fim de fazerem todos os exames possíveis e imaginários, de passarem por todos os pediatras e especialistas em insónias, e de sujeitarem a criança a inúmeros tratamentos experimentais, que em vez de estarem a ajudar, só o estavam a perturbar e a prejudicar a saúde perfeita, todos chegaram a uma única conclusão:
- O vosso filho não precisa de dormir. Nasceu assim e tudo indica que é assim que vai crescer. – Disse o médico.
- Mas como é que isso é possível? – D. Alda nem queria acreditar no que estava a ouvir.
- Não sabemos. É o único caso de que temos conhecimento. Não existem registos de ninguém que tenha nascido sem nunca dormir nem sonhar. O vosso filho nasceu assim e isso nele parece ser perfeitamente normal. Os tratamentos não ajudam, antes pelo contrário, parecem que o põem doente. Deixam-no ansioso, confuso e com todos os outros sintomas que sentem as pessoas que sofrem de insónias. Lamentamos não poder ajudar mais, mas tirando o facto de nunca dormir, a vossa criança é saudável, inteligente e tudo nos leva a crer que terá um desenvolvimento e crescimento normal.
Foi então que o susto inicial passou a medo. Os pais de Jota não compreendiam o que se passava com o filho e começaram a ter medo dele. Evitavam todo e qualquer contacto com a criança. E Jota acabou por ser educado por várias amas, que tão assustadas como o jovem casal, arranjavam sempre desculpas para deixarem de tomar conta da criança, sempre que descobriam o terrível segredo.
Como a medicina não era capaz de resolver o que eles achavam ser uma doença rara, decidiram procurar a cura noutro lado. Viraram-se então para o lado espiritual e místico, e o Sr. António, fraco de cabeça como sempre fora, quase enlouqueceu com as mirabolantes histórias e patranhas que lhes quiseram passar, de maneira, não a ajudar o pequeno, mas a sacar mais dinheiro aos crédulos e ingénuos pais, que na esperança de encontrar uma cura para o pequenito, acreditavam em tudo o que lhes diziam. E foi assim, que nunca perceberam que não existia nenhuma cura para a doença do filho, porque o filho não era nem estava necessariamente doente. Apenas nascera diferente. Deviam sim ter arranjado maneira de lidar com tudo isso, algo que nunca aconteceu, o que fez com que Jota crescesse desligado emocionalmente, quer dos pais, quer das outras pessoas.

Em pequeno, era introvertido e tímido. Corava por tudo e por nada. Sabia que era diferente dos outros e sentia-se excluído. A família, sempre que os visitava, gozava com ele chamando-lhe bicho-do-mato, caladinho e coradinho. Os pais, que mantinham a maior distância que podiam em relação ao filho, fingiam não se darem conta de que isso o incomodava e ignoravam o gozo e as humilhações que o pequeno sofria por parte da restante família. Sentindo-se só, Jota arranjou uma maneira de se defender. Criou e cresceu num mundo só seu, tornando-se responsável e independente muito cedo.
Em casa nunca ninguém dava pela sua presença. Passava horas a brincar sozinho, a ler e a andar de bicicleta no enorme jardim que tinham à volta de casa.
Na escola gostava das aulas. Estava sempre disposto a aprender coisas novas, mas era um martírio quando os professores faziam perguntas, porque apesar de saber sempre as respostas era incapaz de responder. Era nas provas escritas que mostrava o que sabia. As provas orais eram um verdadeiro fracasso. Os intervalos eram um sacrifício para si. Não gostava dos colegas. Não conseguia comunicar com eles. Em vez de aproveitar os intervalos para ir brincar, sentava-se a um canto a comer o lanche e a observar as outras crianças.
Que brincadeiras mais estúpidas. Estes miúdos não sabem brincar. Não têm graça nenhuma. Mas que estúpidos.
Foi por esta altura que Jota começou a ter conversas imaginárias com os estranhos com quem se cruzava.
Um dia na hora do recreio, sentado no seu canto a comer o lanche, viu uma colega nova a falar com os outros miúdos.
Olha aquela deve ser a miúda nova. Nunca a tinha visto. Olá miúda nova!
Imaginou-se a sorrir e a acenar-lhe. E não é que nesse preciso momento a miúda nova olha na sua direcção e lhe sorri, como se estivesse a retribuir o seu sorriso imaginário. A primeira reacção de Jota foi espanto.
Será que ela me leu o pensamento?
Depois sentiu-se eufórico.
Ah e se as outras pessoas também conseguirem ler?
Pensou isto e sentiu-se envergonhado.
Espero bem que não. Era só o que me faltava.
Depois caiu em si e percebeu que tudo não tinha passado de pura coincidência e sorriu para si próprio. Mas foi um sorriso triste enquanto pensava:
És gira miúda nova. Gostava de conseguir falar contigo, mas infelizmente não sou capaz.
A miúda nova ainda olhou mais uma vez para Jota, mas ele já lá não estava.
E foi a partir deste dia que ele ganhou o hábito de ter conversas imaginárias com as pessoas à sua volta que lhe despertavam o interesse. Nos intervalos continuava sem brincar com os colegas mas começou a fazer o “jogo das conversas cruzadas” – nome que achou ser o mais adequado ao novo jogo que tinha acabado de inventar. O jogo era assim:
Jota ia observando os colegas a brincar e iniciava uma conversa imaginária com um deles. A conversa ia tomando rumo conforme as reacções e expressões de cada colega com que falava mentalmente. Se aparecesse outro colega com uma expressão mais interessante, a fazer algo que desse para iniciar outra conversa ou até mesmo a falar com outro colega de algo que Jota achasse interessante, desmarcava-se logo do primeiro colega dizendo:
Até logo!
E lá ia ele meter conversa com outro. De vez em quando levantava-se do seu cantinho e dava a volta pelo pátio do recreio fora em busca de novos amigos com quem meter conversa. Os outros miúdos, que sempre o conheceram estranho, nunca lhe ligaram muito. Uns por medo, outros por falta de interesse. A verdade é que Jota nunca tinha tido problemas com nenhum, aliás, sempre que achavam que ele poderia estar em perigo, por exemplo, quando nos seus passeios pelo recreio, se metia distraído pelo campo de futebol a meio de um jogo, sem se dar conta, os colegas tiravam-no de lá gentil e pacientemente. Chamavam-lhe o “sonâmbulo” porque parecia que andava a dormir em pé.
Mal sabiam eles que Jota não dormia, nunca.
Foi crescendo assim. E divertia-se imenso com as conversas imaginárias que mantinha com pessoas reais com quem não conseguia falar. Nestas conversas não havia lugar para mentiras, Jota era sincero e directo e os estranhos com quem “conversava” nunca se queixavam da sua sinceridade, antes pelo contrário, por vezes até lhe agradeciam. Para si isto foi muito bom enquanto durou.

Mas as coisas não duram para sempre e tudo mudou no dia em que, já crescido e farto da ignorância, maldade e mesquinhez de toda a família, começou a falar e nunca mais se calou. Começou a dizer tudo o que lhe vinha à cabeça sem pensar no que dizia nem nas consequências. O resultado foi trágico. A família, em vez de gozar, passou a ser gozada. No início, foi divertido. Ele vingou-se de todos. Mas deixou de ser divertido e começou a ser embaraçoso, porque quando quis parar, já não foi a tempo de conservar os poucos amigos do Liceu que tinha conquistado. Ser sincero tornou-se um vício. Não conseguia mentir. E como ninguém, ou quase ninguém, gosta de ouvir as verdades, perdeu os amigos que tinha. Decidiu deixar novamente de falar e isolou-se, tornando-se um jovem solitário.
Os pais pagaram-lhe os estudos e as férias muito longe de casa. Não gostavam de o ter por perto. Achavam-no demasiado esquisito. Uma vergonha e embaraço para familiares, vizinhos e amigos.

Depois de lá conseguir acabar o curso de enfermagem a muito custo, não pela matéria propriamente dita, algo que sempre o interessou e ao qual sempre teve o melhor aproveitamento, mas pelo contacto físico que a profissão requer, não teve coragem para ir a entrevistas de trabalho e ficou no desemprego e com 24 horas livres, dia e noite sem saber o que fazer.
Antes de estar a trabalhar no turno da noite fazia tudo e mais alguma coisa para ocupar as horas livres.
Como nunca gostou de passear à noite, por ser perigoso e porque a fauna que se passeia à noite pelas ruas anda sempre à procura de alguma coisa e suponha erradamente que ele também, decidiu aprender a fazer diversas coisas em casa, em vez de andar a passear.
No Verão fazia malha enquanto via televisão ou ouvia música e chegava ao Inverno sempre com camisolões, cachecóis e gorros quentinhos feitos por si.
Depois descobriu a Internet e passava as noites em fóruns de pessoas que sofrem de insónias e das mais diversas perturbações de sono. Descobriu que é realmente um caso raro, o único de que há registo. Percebeu que tinha que encarar o seu problema de frente e de vez. Continuava saudável, não sentia necessidade de dormir. O único problema que tinha era em ocupar tanto tempo livre.
Mais tarde descobriu a fotografia. Interessa-se por fotografia e é autodidacta. Acha que a melhor forma de aprender é experimentar, por isso, anda sempre com a sua máquina fotográfica digital pendurada ao pescoço. Gosta de registar as diversas expressões das caras dos desconhecidos com quem se cruza. Gosta de apanhar as pessoas distraídas e de lhes tirar retratos. Só tira fotografias a preto e branco, porque quer focar toda a atenção nas expressões dos estranhos. Acha que a cor pode ser uma distracção para quem vê as fotografias. Ambiciona vir a fazer uma exposição chamada “Anónimos”.

Como sempre gostou de andar a pé e de comboio, passa os dias a andar de transportes e a observar as outras pessoas. Os seus hábitos, tiques, o que vestem, de que falam umas com as outras, o que comem, o que bebem.

Quando terminou o curso, os pais deram-lhe um pequeno prédio de 3 andares, com ar abandonado por fora, mas remodelado por dentro, nos arredores de Lisboa, no qual vive sozinho. Não tem inquilinos, porque não quer e não precisa. Tem o prédio inteiro por sua conta. Dorme no último andar, num sótão amplo com kitchenette, wc e uma varanda virada para as traseiras do prédio, com vista para uma mata.
No 2º andar, tem montado um estúdio de fotografia, uma câmara escura e, na sala, tem uma enorme e excelente colecção de livros e discos de vinil. Eliminou cozinha e wc.
No 1º andar, está a preparar a sua primeira exposição de fotografia. Eliminou a cozinha e dois quartos. Ficou com uma sala enorme e wc.

Certo dia, num dos seus passeios diários ouviu um telefone de uma cabine de rua a tocar. Como não estava ninguém para atender, decidiu levantar o auscultador só para dizer que era engano.
Não sabe o que o levou a ficar tanto tempo a falar ao telefone. Secalhar foi por estar a falar com um estranho a quem não via a cara. A verdade, é que não só o ajudou, como o fez sentir-se melhor do que nunca. Quase se sentiu feliz. No dia seguinte, foi procurar trabalho num call-center. E, foi assim, que passou de enfermeiro, não praticante, a operador telefónico de um call-center, numa linha de emergência médica: “ASSP – A sua saúde primeiro”. O seu primeiro emprego.
É um empregado exemplar. Assíduo, pontual, responsável, decidido, perspicaz e, que acima de tudo, gosta do que faz, e isso nota-se. Se não é promovido, não é por falta de convites e tentativas da parte dos seus superiores, mas sim por falta de vontade. O facto de ser promovido a supervisor implicaria ter de falar com os colegas e tratar de vários assuntos cara a cara. Isso assusta-o e ele prefere manter o que tem.
Gosta de falar com as pessoas pelo telefone. Sente-se realizado por ajudar as pessoas que ligam para a linha de emergência médica para a qual trabalha. É calmo, discreto, introvertido, bem-educado, sincero. Diz tudo o que lhe vem à cabeça, não pensa antes de falar.

Hoje é um jovem de 25 anos que nunca dormiu nem sonhou desde que nasceu. Isto nunca lhe afectou a saúde. Nasceu assim e isso para ele é normal. Leva uma vida calma. Trabalha de noite, passeia e fotografa desconhecidos durante o dia.
É alto e magro. Mantém os lindos olhos azuis, o cabelo preto, solto e com jeitos, e a tez pálida e perfeita. É o mais discreto possível, pois gosta de passar despercebido para evitar o contacto com as outras pessoas. Geralmente veste gangas, t-shirts ou sweatshirts lisas e brancas, blusão desportivo com carapuço e calça ténis confortáveis.
Anda sempre de mochila às costas, com acessórios da máquina fotográfica, casaco impermeável para os dias em que chove, lenços de papel, pequena lanterna, carteira e chaves de casa. Tem ar de turista e quando algum desconhecido mete conversa consigo, seja por que motivo for, finge que não percebe, para não ter que falar com ninguém.
Jota não vai a restaurantes nem a cafés. Faz compras no supermercado mais próximo de casa sempre que precisa.
Vive num mundo à parte, criado por ele e só para ele.

D. Alda sente-se triste por saber que o grande sonho de um dia ser avó nunca se irá realizar. O marido sempre que a vê pensativa e triste a olhar para as fotografias de bebé do filho, sabe no que ela está a pensar e costuma dizer-lhe em tom de brincadeira:
- Deixa estar filha, não é caso para ficares tão triste. Já pensaste no que seria de nós se viesse outro como o pai? Dá graças a Deus por isso não estar nos planos do nosso rapaz.
A mulher sabe que o marido também fica triste por não vir a ser avô e que brinca com a situação só para ver se a anima. Mas acaba sempre por sorrir e lhe dar razão porque pensa que com a sorte que os dois têm ainda lhes calhava mesmo outro igual na rifa.
O Sr. António também costuma pensar na vida íntima do filho.
O raio do rapaz é tão estranho. Mas como é que é possível ele não gostar de ninguém? Não é carne nem é peixe. Não tomba para um lado nem para o outro. Como é que é possível alguém viver assim?
Não sabia que o filho se sentia atraído por mulheres, mas que a atracção desaparecia assim que elas abriam a boca. O chorrilho de disparates que ouvia nas conversas entre amigas era insuportável a maior parte das vezes, aborrecida noutras e hilariante noutras tantas. Jota acha as mulheres muito exageradas em tudo, sobretudo nas emoções. E com um grande defeito – não conseguem estar caladas, nem têm noção de quando se devem calar.
Enfim, falam demais.

Neste momento Jota está na fase da culinária. Começou a coleccionar receitas e a pô-las em prática.
Faz de tudo um pouco. Tem preferência pelos assados e pelas sopas. Costuma fazer um panelão que lhe dura para uma semana inteira. Adora sobremesas. É especialista em bolos, queques e tartes. Todos os dias faz um bolo, queques ou tarte diferentes e leva para o intervalo das 05h00 a contar com Hugo “Boss”, que tira o intervalo na mesma altura que ele para se deliciar com o que Jota lhe traz.
– Obrigadinho man. Se não fossem estes deliciosos incentivos caseiros a meio da noite, não sei como é que aguentava. És o maior. – Jota não lhe responde mas sorri sempre que houve estes comentários.
Como tem os horários diferentes de todas as outras pessoas, almoça quando chega a casa do trabalho, por volta das 9h00 da manhã. Sopa e o que tiver sobrado do dia anterior. Tem o hábito de comer de 4 em 4 horas. Por volta das 13h come fruta e um iogurte, que tem sempre na sua mochila, e às 17h também. Às 20h começa a cozinhar para ter tudo pronto para as 21h, hora a que janta. No trabalho tem dois intervalos. O 1º à 01h00, no qual come uma sandes de queijo fresco ou de requeijão com mel, nozes e alface, que preparou e levou de casa, e bebe um café com leite frio. O 2º intervalo é às 05h00, altura em que toma o pequeno-almoço: cereais com leite frio e a fatia de bolo, tarte ou queque que fez à hora do jantar.

Mais uma noite desgastante no call-center.
As bruscas mudanças de temperaturas parecem estar a afectar a maioria da população. Por estranho que pareça não são os mais idosos que se queixam mas sim os mais jovens.
- Realmente o tempo tem estado esquisito, mas não acho que seja caso para alarme. Estou farto de tanto alerta, credo! - Diz Hugo “Boss” a Jota, que se mantém calado mas atento à conversa. E Hugo continua a falar, como se estivesse a responder a alguma pergunta feita por Jota:
- Pois, também já reparei que o pessoal mais novo é muito mais descuidado do que os mais idosos. Ultimamente só se sabem é queixar: “Ai que me dói a garganta, ai que já me constipei, ai que estou com gripe, ai estou quem nem posso…” – Diz Hugo com uma voz fininha, mudando de seguida para o tom normal - É muito bem feito. Não têm cuidado nenhum. Não é por falta de aviso, não. O tempo está esquisito, e depois? Custa muito andar de t-shirt durante o dia, porque tem feito um calor abrasador, e com um casaco ou impermeável debaixo do braço porque tem chovido à noite e as manhãs estão frias? Não custa pois não? – Olha para a mochila de Jota que está pendurada na cadeira deste e diz: – Até tu, que és o gajo mais estranho que eu conheço andas precavido. – Jota olha para ele e levanta o sobrolho.
- Ok já percebi. És estranho mas não és parvo. – Jota acha o comentário tão sincero e inocente que não resiste e desata a rir. Ao qual o outro ainda lhe diz:
– Além disso acho que és o gajo mais porreiro que conheço, apesar de nunca falares comigo. És um bom rapaz e um bom ouvinte.
Ouve-se ao longe alguém a pedir a ajuda do “Boss” e lá vai ele. Não sem antes passar por trás de Jota, ir espreitar a etiqueta da t-shirt branca que este tem vestida e dizer:
– Fruit of the Loom? Nice! Obrigadinho pela paciência man, até já. - Jota vê-o ir-se embora e também repara no que ele tem vestido, mas sem fazer comentários. Está, como sempre, de calças de ganga e uma t-shirt colorida. Pendurado na cadeira tem um blusão de penas com carapuço. Jota acha-lhe piada. O excêntrico penteado que usa, cabelo castanho claro muito comprido, apanhado num carrapito, combina na perfeição com a sua personalidade e com o estilo de vida que leva. E pensa como é engraçado duas pessoas tão diferentes como eles os dois conseguiram ter e manter uma ligação com linguagem tão própria e um entendimento mútuo tão funcional. Os dois têm uma estranha mas sólida relação profissional e de amizade. Ambos sabem que apesar de tudo podem contar um com o outro para o que der e vier.
A princípio, o único elo de ligação entre o mundo real e o seu, é Hugo “Boss” Santos, supervisor no call-center, o único que consegue comunicar com Jota. É o oposto deste, mas consegue arrancar-lhe sorrisos de vez em quando. É a única pessoa que o compreende e respeita tal como é.
Hugo tem 35 anos. É extrovertido, falador, enérgico. Adora dar ordens e detesta que não as cumpram. Adora falar, principalmente de “gajas”. Nos tempos livres é surfista e praticante de desportos radicais. Costuma andar com nódoas negras e a coxear, devido aos tombos que dá, nos desportos que pratica.
“A vida é curta demais para tantas preocupações” e “Vive cada dia como se fosse o último.” - São as suas frases preferidas.

8h00 – fim de mais um turno. Já é de dia. Jota pega na mochila e no casaco e vai para casa almoçar.
Assim que acaba de almoçar é novamente hora de saída. Prepara a mochila para mais um dia de viagem e lá vai ele, metendo-se por ruas e ruelas, a descobrir novos caminhos, novas caras, novos “amigos”, novos “anónimos”.

Está sentado numa estação à espera do próximo comboio, entretido a observar os desconhecidos que estão à sua volta. Assusta-se com o barulho do horrível toque do telemóvel de uma Sra. loura que está sentada ao seu lado. Repara que a Sra. tem um ar um pouco espampanante mas que está muito bem arranjada. Ouve a conversa que ela tem com o marido:
- Bom dia querido. Oh não me digas. A sério? Às 19h? Então mas se calhar temos tempo. Reservei a mesa para as 20h. Queres que reserve para mais tarde? Ah mas porque é que também tens de os levar a jantar? Não lhes chega ter uma reunião fora de horas?
Ai mulher pára de fazer tantas perguntas. Tu não vês que ele não quer nem vai jantar contigo hoje? Seja jantar de negócio que não seja o mais certo é ir-se divertir… Tem mas é juízo e arranja um programa muito melhor do que o dele.
- Não querido, deixa estar que eu desmarco. Boa sorte com o negócio. Beijinho. Até logo. – Assim que desliga o telefone Jota vê a mulher marcar outro número.
Pronto, lá vai ela desmarcar o jantar à pressa. Está bem ensinada, sim senhor. Em vez de aproveitar e arranjar outra companhia…
Nem de propósito, parece que a mulher estava a ouvir os comentários de Jota:
- Olá amiga. Tudo bem? Olha, não marques nada com ninguém para hoje.
O meu marido tem um jantar de negócios… sim, outra vez… não estou nada chateada, antes pelo contrário. Deixou-me o visa. Por isso eis os planos: vamos as duas às compras, depois vamos jantar a um restaurante chiquérrimo que abriu na semana passada e ainda está na moda e depois…
Boa amiga, assim mesmo é que se fala. Jota sorri divertido com a decisão que a nova “amiga” tomou.
O seu pensamento é interrompido pelo barulho do comboio que acaba chegar.
Vê a loura andar em direcção à carruagem, para entrar:
Tchau amiga. Diverte-te.
A loura olha para trás. Jota sabe que ela está a sorrir da conversa que está a ter com a amiga, mas contudo retribui o sorriso como se fosse para ele próprio.
A loura vê-o sorrir para si e levanta a sobrancelha com ar interrogativo. Ele levanta a mão num gesto de adeus e sorri-lhe novamente. A loura não resiste ao seu sorriso espontâneo e simpático e retribui com um ligeiro piscar de olho. Jota fica a observá-la a entrar no comboio. Decide sentar-se novamente e apanhar o próximo comboio. Quando as portas se fecham vê que a sua amiga loura se sentou perto da janela e que continua em amena cavaqueira a falar ao telemóvel. Pensa que provavelmente está a falar de si e contar à amiga a troca de sorrisos e o piscar de olho consigo. Pega na máquina e tira-lhe uma foto.
Sentado novamente no banco fica com ar pensativo a olhar para a foto que acabou de tirar. Está a pensar na legenda que lhe vai dar.
Por baixo da foto que tira a cada desconhecido vai por, não o nome da pessoa, porque não sabe nem é algo que lhe interesse saber, mas uma espécie de legenda, onde vai escrever o que melhor definir a expressão de cada um – seja apenas uma palavra, uma frase feita, um poema, um número, até mesmo um conjunto de palavras desordenadas para o mero observador, mas que para Jota farão todo o sentido.
O tempo passa e ouve-se mais um comboio a chegar. Jota olha uma última vez para a foto antes de desligar a máquina e sorri. Já sabe qual será a legenda da simpática loura.
“Quem disse que o dinheiro não traz felicidade, devia ficar na miséria.”
Ainda a sorrir pensa na vida que ela terá. Não deve ter o casamento perfeito mas tem a sorte de ter dinheiro e amigos com quem partilhar e desfrutar os pequenos prazeres da vida.
E é assim que o nosso rapaz mantém contacto com os que o rodeiam.
Como não tem amigos, nem quer ter, entretém-se a observar as outras pessoas: os seus hábitos, tiques, o que vestem, de que falam umas com as outras, o que comem, o que bebem e até finge que as conhece.

Ao fim da tarde regressa a casa para se preparar para mais uma noite de trabalho.
Assim que chega à porta da entrada do seu prédio já tem as chaves na mão. Abre a porta e quando volta a guardar as chaves na mochila, tira de lá uma pequena lanterna que acende de imediato. Isto porque já há algum tempo que não há luz na entrada do prédio e Jota prefere andar com uma lanterna pequena na mochila do que ter de chamar alguém para fazer a reparação.
Sobe ao 3º andar. Pousa a mochila no sofá. Tira uma cerveja preta do frigorífico, agarra no livro que anda a ler e sai para a pequena varanda com vista para uma mata. Estende-se ao comprido na rede que aí tem pendurada. Àquela hora o sol já está fraco e corre uma leve brisa. Ali fica durante um bocado a beber a cerveja preta e a ler mais um capítulo do livro, até o dia se transformar em noite.
Sente-se feliz com estes pequenos prazeres da vida. Claro está que de vez em quando sente falta de contacto físico e de calor humano, mas prefere estar sozinho, rodeado pelas suas coisas, e pegado aos seus hábitos do que ter alguém a tirar-lhe tudo isso, a quebrar-lhe a sua rotina e a invadir-lhe o seu espaço.
No fim de mais um capítulo levanta-se e vai para a casa de banho. Abre as torneiras e põe a água a correr para o banho de imersão da praxe. Enquanto a banheira enche prepara a roupa que vai vestir. O interior do seu roupeiro é digno de ser visto. As roupas estão muito bem arrumadas e organizadas por cores. O que não é muito difícil porque Jota só tem calças de ganga azuis escuras, todas do mesmo tom, t-shirts e sweatshirts brancas e lisas, que apenas se conseguem distinguir pelas etiquetas das diferentes marcas. No armário ao lado tem uma série de blusões pretos desportivos com e sem carapuço. E em baixo uma boa colecção de ténis confortáveis e pretos, que parecem todos iguais, mas não são. A única pessoa que parece dar pela diferença da sua roupa e percebe que ele não veste o mesmo, mas sim igual todos os dias, é Hugo “Boss”, que tem o hábito de se meter com ele e ir espreitar a etiqueta das suas t-shirts “iguais” todas as noites, porque só assim é que as consegue distinguir.
Jota não se importa com o que os outros pensam nem está interessado em saber as suas opiniões acerca de nada nem sobre si mesmo. Mas no fundo sente-se bem com este pequeno gesto de Hugo, que demonstra a preocupação, compreensão e afinidade que sente por si.

Por volta das 22h00 sai de casa.
Apanha o comboio das 23h00 e lá vai ele para o turno das 00h00 onde fica até às 8h00.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

E Agora Algo Completamente Diferente




Decidi começar o ano com uma pergunta:

Qual o sentido da vida quando nada faz sentido?

Fico a aguardar as vossas respostas.
Obrigada!

(influências de Monty Python, claro!)