quinta-feira, 4 de novembro de 2010

O dia de Natal

(TPC de escrita criativa, para uma aula que acabei por faltar...=P)

Dia 25 do último mês, a noite cai, mas a sala está estupendamente iluminada, filas inúmeras, corpos miúdos ainda mais, espalhados escrupulosamente pelo imenso armazém fabril. Este será o seu oitavo Natal, palavra conhecida da cabeça, mas estrangeira ao coração, nunca a celebrou, no seu país ninguém tem o hábito, mas o corpo sabe que algo ocorre nestes dias, as pequenas mãos brancas mexem-se sempre mais rapidamente nestas últimas semanas do ano, passam-lhe pelos dedos centenas de bonecas todos os dias, são pouco mais pequenas do que ela, após saírem da sua mão passarão por mais algumas, entrarão depois num avião, ou barco ou comboio, ela não sabe, mas sabe que do lado de lá da viagem está alguém da mesma idade que ela ou semelhante. Aqui está frio, as luzes brancas estão no tecto alto do barracão, o calor delas não chega cá a baixo, mas do lado de lá deve estar quente, o calor aconchegante de uma lareira talvez, a excitação deliciosa de uma caixa colorida há dias sentada debaixo de uma árvore, árvore que, mesmo sendo de plástico, dá vida aos sonhos dos tantos que, do lado de lá, apenas têm de rasgar o embrulho.

O sol raiou há horas, uma brisa fria escorrega-se para debaixo do edredão, ouvem-se umas vozes à distância, há uns risos de criança, uma gargalhada de homem, talvez o pai. Ele ergue-se do cartão húmido onde passa habitualmente as noites, incluindo as de Natal, apoiado no cotovelo vê a família que de repente desaparece passada uma esquina, ele come castanhas num jornal, elas têm uma boneca na mão, riam alto. Já se contam como treze as consoadas passadas na praça aqui na baixa, onde há sempre concertos à noite nestes dias, adormece enlaçado no calor de milhares de corpos dançantes, no dia seguinte desperta com um frio meias adentro, um muco que escorre silenciosamente pelo nariz, com um estômago saudoso da sopa e do bacalhau da véspera, a sopa e bacalhau que, todos os anos, circulam nos últimos minutos dos telejornais dos vários canais. Senta-se encostado a um dos grossos e quadrangulares pilares do ministério, retira o áspero cachecol do pescoço, o organismo acorda agora de vez, três ou quatro companheiros de arcada deambulam pela periferia do seu olhar, são 11 horas e há um dia quase inteiro pela frente, se é 25 ou um outro número qualquer pouco importa, aos sentidos a diferença é menos que nenhuma, o sol atrás das nuvens é igual a todos os outros sóis e nuvens de todos os outros dias com sol e nuvens, o frio é o mesmo de todos os Invernos, a fome a mesma de todas as manhãs até meio da tarde.

É loira, pele alva e imaculada, azul no olhar mas rígida nas carnes, nasceu faz meses em lugar inóspito, muitas máquinas rijas e superfícies frias ao toque, andava ela ainda nua, um corpinho frágil saltitando de mão em mão, todas escondidas dentro de luvas macias, os olhares caíam em si como se não estivessem nem ela nem eles ali, era apenas mais um de uma infinita lista de produtos a encaixar, atarraxar, terminar e empacotar numa caixa de cartão qualquer, acamada entre plásticos ligeiramente insuflados. Assim ficou na mais pura escuridão, horas a fio, acordou mais tarde numa prateleira a dois metros do chão, via sobretudo cabeças e cabelos, uma dessas cabeças apontou para ela e um homem agarrou-lhe pelo braço e voltou para dentro de uma caixa. O pesadelo da escuridão tinha voltado, a jovem loira não percebia o porquê destas viagens ocultas, ouvia vozes e passos, barulhos mecânicos e portas a bater, depois apenas silêncio, durante dias cortado só por vozes suaves, de vez em quando uma melodia doce no ar, passos delicados com requebres de tecido roçado. Um dia, de repente, vozes exaltadas, risos e canções no ar, o som de talheres e pratos, e movimento na caixa, trambolhões amparados pelas plastificadas almofadinhas de ar, e luz finalmente, branca sobretudo, mas intermitentemente também e às cores, rostos vários, sorrindo e voltados para uma criança, parecia-se com ela, loira igualmente, olhos verdes muito claros, com rasgos de transparência, brilhando com a intensidade de uma alegria especial, a boneca ergueu-se no ar, no topo das mãos suadas mornas da menina, estava quente ali, um fogo aconchegante no canto da divisão, os olhos que a fitavam, os da menina loira acima de todos, estavam repletos de uma vida que ela não havia conhecido ainda.

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