domingo, 24 de abril de 2011

Livre


Habituados à escuridão de uma noite sem dormir, os seus olhos começaram a pestanejar aos primeiros indícios da manhã. O sol ainda nem tinha acordado, mas o azul já havia começava a romper o negro e a esconder as estrelas... O corpo cansado recusava-se a colaborar e sair da cama, começava a parecer uma empreitada demasiado ambiciosa. Tinha sonhado com estas férias durante meses. Sonhos reconfortantes com os pequenos privilégios dos que não cumprem horários e diante dos quais os dias se estendem intermináveis. Imagens que o tinham ajudado a suportar o trabalho enfadonho e forçado e a aturar as conversas de chacha sobre futebol e mulheres fáceis dos colegas, enquanto fazia a contagem decrescente dos dias que faltavam... Estaria livre disso tudo em breve... 

E agora, apenas 3 dias depois, da varanda do quarto de hotel que alugara na praia, tudo parecia vazio e insignificante. Tudo perdera rapidamente o brilho e o calor. Tinha querido fugir da cidade, ir para onde não o conhecessem, viver dos pequenos prazeres dos dias de verão - o sol, o mar, os livros, os cantos das gaivotas, o toque da areia, os cheiros dos jardins e os sons da praia e das esplanadas...

Tinha-se esquecido que, mesmo longe de casa, os fantasmas não tiram férias. A angústia continuava a adormecer enroscada no seu peito, as unhas cravadas bem fundo, o abraço frio da solidão não se esquecia de o envolver onde quer que fosse, para mostrar a todos que lhe pertencia e o desespero mantinha a costumeira emissão em estéreo na sua cabeça - pensamentos negros e perturbantes a todas as horas do dia.. 

Ao fim do segundo dia, as pessoas começavam a tornar-se tóxicas e difíceis de suportar- as brincadeiras barulhentas dos miúdos, as gargalhadas e as conversas animadas, as trocas de afecto entre namorados.... O mundo ignorava-o constantemente. Não havia espaço para ele. Tinha tentado de tudo para ser "igual" aos outros, mas o seu caminho tinha sido sempre o mais ermo possível, sempre no sítio errada à hora errada, sempre com a piada que ninguém ouviu, o comentário que ninguém percebeu, o sorriso mal-entendido. Apenas um rosto na multidão, que não se distingue dos demais, por ser demasiado igual ou fácil de esquecer.

Inspirou o cheiro a maresia uma última vez, entrou no quarto e sentou-se na cadeira de palhinha ao lado da cama.. Acendeu um cigarro e fumou-o na penumbra, em silêncio, como passara a  maior parte da sua vida.

A última coisa que ouviu foi um estalo ensurdecedor, quando a bala abriu caminho até ao cérebro... Estava livre - os fantasmas só assombram os vivos e a dor só a tem quem ainda deseja ter o que não pode.

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